Um grito contra a guerra
Jorge Wemans, preso em Caxias na sequência do caso da Capela do Rato
Ao princípio da noite de 31 de Dezembro de 1972 a polícia de choque bloqueou com grande aparato todos os acessos à Calçada Bento da Rocha Cabral e intimou os que se encontravam no interior da Capela do Rato a abandonarem-na. Não tendo sido obedecidas, as forças policiais, apoiadas por cães, invadiram-na, arrastando para o exterior todos os que ali estavam. Mais de uma centena de pessoas foi, sob voz de prisão, conduzida para identificação na esquadra da PSP do Rato. A maioria foi posta em liberdade, mas um grupo foi levado para as masmorras do Governo Civil. Destes, 13 seriam, ainda nessa noite, enviados para a prisão de Caxias. Terminava, desta forma abrupta, a vigília de reflexão sobre a guerra colonial que havia começado 24 horas antes e em que muitas centenas de pessoas tinham participado, entrando e saindo livremente da Capela. No dia 1 de Janeiro, apesar da proibição policial, celebraram-se na Capela do Rato as missas da manhã, tal como o Cardeal-Patriarca, D. António Ribeiro, havia determinado. No final da última missa os dois padres celebrantes foram presos pela PIDE/DGS. Um deles só seria solto depois de D. António Ribeiro passar uma hora à porta da António Maria Cardoso garantindo que dali só saía levando o preso. Resumidos em curtos parágrafos, os acontecimentos daquilo que ficou para a história como “O Caso da Capela do Rato” parecem indicar que o afrontamento entre o Governo e a Igreja Católica a propósito da guerra colonial era permanente e total. Nada mais enganador! Pelo contrário, ao fim de uma década de guerra o silêncio dos católicos e da hierarquia católica era ensurdecedor! É certo que ela já não colhia o apoio entusiástico que a Igreja lhe oferecera nos primeiros anos. Mas a guerra colonial permanecia como assunto tabu, reprimindo-se, dentro da própria Igreja Católica, quem ousasse divulgar os casos mais violentos de massacre e tortura, ou, mais simplesmente, pretendesse reflectir no âmbito eclesial sobre a justeza da guerra. Então como explicar os acontecimentos da Capela do Rato? Desde o início da guerra, na continuidade da sua oposição à ditadura salazarista, que um conjunto não organizado de católicos vinha pontualmente questionando as opções do regime. Algumas iniciativas, como a vigília de São Domingos, a fundação da cooperativa Pragma, a carta aberta ao ditador, o apoio ao Bispo do Porto (expulso por Salazar), a criação da Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos foram pontuando os anos sessenta. As relações com movimentos e instituições internacionais (eclesiais e multilaterais) permitiram encontrar solidariedades, textos, reflexões e tomadas de posição que obrigavam a questionar a guerra. Toda a acção de Paulo VI, bem como as suas tomadas de posição e a criação das Comissões Justiça e Paz foram decisivas para despertar as consciências de alguns católicos em Portugal. Mas num país controlado pela censura e pela sistemática apreensão de livros, textos e correio, numa altura em que ainda não existiam nem fotocópias, nem telemóveis, nem Internet, a informação contrária aos interesses do regime circulava devagar e aos soluços. A partir do final da década de sessenta o número de católicos contra a guerra colonial começou a crescer rapidamente. As eleições de 1969 (com vários católicos envolvidos nas listas de oposição) representaram o canto do cisne da “abertura marcelista”. Cada vez era maior o número de jovens regressados da guerra, testemunhando os seus horrores e sua bestialidade, dando ao mesmo tempo testemunho de uma realidade colonial que era toda ao contrário da “acção evangelizadora e civilizacional” que o discurso oficial da Igreja e do Estado proclamavam. O movimento estudantil tinha iniciado uma fase de radicalização a que a ditadura respondia com cargas policiais, fecho de Faculdades, expulsão de estudantes. Neste contexto, a oposição à guerra, como imperativo da fé em Jesus Cristo, foi fazendo o seu caminho na consciência de dirigentes dos movimentos juvenis da acção católica, em algumas comunidades, em membros das comunidades religiosas, em padres seculares e em outros grupos eclesiais. Mais do que um grupo organizado, o que esteve na base do Caso da Capela do Rato foi a convergência de diversas pessoas e grupos mais ou menos informais, marcados por uma solidariedade que já tinha sido testada em anteriores acções de distribuição de panfletos denunciando a guerra colonial, de circulação de livros, textos e informação anticolonial. Rede de relações e solidariedades de que a comunidade a que o Pe. Alberto Neto presidia na Capela do Rato fazia parte. E por isso a iniciativa da vigília pela paz só ali foi possível. Jorge Wemans, preso em Caxias na sequência do Caso da Capela do Rato, Director da RTP2 |
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