quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Entrevista de Jerónimo


Entrevista de Jerónimo de Sousa ao "Público"


Jerónimo de Sousa. O secretário-geral do PCP assume o seu partido como alternativa à política do Governo, mas os comunistas têm condições precisas para virem a negociar com o PS. Até porque consideram que os socialistas têm "compromissos" com a política de direita e com o memorando

Entre 30 de Novembro e 2 de Dezembro, realiza-se em Almada o XIX Congresso do PCP. Um conclave partidário onde não se anunciam alterações ao que é o programa e o ideário do partido. Jerónimo de Sousa, secretário-geral, que aos 65 anos será reeleito, explica as margens da disponibilidade do PCP para entendimentos políticos.

Não haverá alterações ao voto contra do PCP ao Orçamento do Estado, na terça-feira? 

Não há alterações na medida em que o problema está no documento, que tem como matriz fundamental o mais brutal assalto fiscal da nossa história democrática.

O ministro Vítor Gaspar voltou a insistir na necessidade de repensar as funções sociais do Estado. Como é que o PCP pretende evitar o desmantelamento do Estado social? 

É importante descodificar o que é isso de refundar as funções sociais do Estado. No essencial refere-se a aplicar um golpe profundo em funções sociais como a Educação, a Segurança Social, a Saúde. Criando uma concepção de um Estado assistencialista. Afirmando que o Estado não pode suportar a dependência dos portugueses, quando, na prática, sabemos que os portugueses, pelas vias dos seus impostos e do pagamento dos custos da saúde e do ensino, já contribuem para essas funções sociais. É uma falsidade que procura, no essencial, corresponder a um projecto.

Como é que o PCP pretende evitar isso? 

Impedindo os cortes brutais que estão ensejados. Consideramos que através de outra política fiscal, outra política de redistribuição da riqueza, é possível e justificável manter essas funções sociais. Mas o grande problema é que este Governo está direccionado para servir os grandes interesses. Fazem algum favor em relação à Segurança Social, em que as pessoas descontam a vida inteira? Fazem algum favor em relação à Saúde, quando hoje, em termos da União Europeia, as famílias portuguesas são as que mais pagam? Fazem algum favor em relação à Educação, quando a existência de propinas leva a que muitos estudantes já não tenham condições de ter um direito que a Constituição considera fundamental? Portanto, há aqui uma mistificação tremenda. Essa ideia de que não há dinheiro tem que ver com o destino que este Governo quer dar ao dinheiro que existe.

O PCP não devia juntar-se ao PS e ao BE para tentar renegociar a dívida e o memorando? Não devia haver um esforço de aproximação ao PS? 

O PCP foi o primeiro, a 15 de Abril passado, a apresentar uma proposta de renegociação da dívida. O grande problema é que o PS vai anunciando propostas e não é capaz de clarificar o seu grau de comprometimento com o memorando.

Mas António José Seguro não é José Sócrates. E quem lê as teses ao Congresso só lê críticas violentíssimas ao PS, desde Mário Soares. Dizem que o PS obedece a "centros de oligarquia financeira". O Seguro faz isto? Não é um discurso muito duro? 

Mais do que duro é real. A política de direita começou com Soares.

Passaram 40 anos. Há novas gerações.

Mas num quadro de alternância, ora o PS, ora o PSD, com ou sem CDS, prosseguiram essa política. Admito que haja diferenças entre Seguro e Sócrates. Mas, por exemplo, nos debates com o primeiro-ministro sente-se sempre o PS agarrado e comprometido, porque a direita permanentemente lhe faz lembrar o seu compromisso com um documento, que é preciso quanto às medidas que comporta.

A direita consegue encontrar um mínimo denominador comum que permite aos dois partidos governar. O PS ou o faz sozinho ou não tem da parte do PCP nenhuma abertura para fazer uma alternativa...

Não há problema nenhum em relação ao diálogo. O problema de fundo é que sempre, sempre, ao PS lhe pula o pé para políticas que a direita acolhe e com que se identifica.

O PS é hoje mais próximo da direita do que da esquerda? 


É um partido que pratica uma política de direita.

Não há também um problema de imutabilidade do PCP? Muitas das propostas concretas do PCP e do BE são próximas e até idênticas, até na convergência da acção parlamentar, mas quem lê as teses é surpreendido, porque vocês dizem do BE o que Maomé não disse do toucinho: social-democratizante, demagógico.

Fazemos uma caracterização política, nem carregamos muito no posicionamento anticomunista do BE. Mas isso não invalida que, muitas vezes, convirjamos em iniciativas legislativas e na identificação dos problemas.

Por que é que o PCP esteve contra o Congresso das Alternativas? Não é necessário plataformas para encontrar propostas concretas, até dentro daquilo que é o frentismo que o PCP sempre defendeu? 

Temos de ver em termos de processo. Nós, com a nossa autonomia, não gostamos de ir a reboque. O PCP foi informado por Jorge Leite de que se iria realizar o Congresso e dos seus objectivos. Eu disse: "Muito obrigado pela informação e transmitirei ao meu partido." Mas estávamos perante um facto consumado. O convite aparece posteriormente, num processo que achamos, mesmo no plano ético, discutível.

Cada situação tem as suas especificidades, mas se fizermos um balanço, aquilo que percebemos é que o PCP contribuiu para o chumbo do PEC IV e para a queda do Governo, continua a querer contribuir para o fim do statu quo, mas não consegue encontrar pontes que mostrem que não chega protestar e lutar contra, é preciso construir.

O PCP tem uma proposta política alternativa.

Só estaria disponível para ser Governo sozinho? 

Não. Queremos assumir as responsabilidades governativas que o povo português entenda atribuir ao PCP, mas num quadro de uma política patriótica de esquerda. Consideramos o envolvimento e a participação de democratas, de patriotas que estejam abertos à possibilidade de concretização desta política.

Haverá hipótese de encontrar essa convergência num candidato comum de esquerda nas próximas presidenciais? Nas teses abrem a porta a uma candidatura própria.

É uma questão prematura. Nas teses fazemos uma reafirmação da nossa intervenção própria, mas procurando contribuir para que na Presidência esteja alguém capaz de cumprir a Constituição. E como é sabido, o PCP tem apresentado candidaturas, mas em momentos importantíssimos tem feito opções.

Nas teses falam da necessidade de uma vasta frente social, com o papel central da CGTP, mas por um lado criticam os movimentos alterglobalização, como os "indignados", e por outro, não falam de manifestações em Portugal, como a de 12 de Março de 2011 e a de 15 de Setembro passado. O PCP está a deixar ao BE o campo dos movimentos sociais? 

Quero afirmar que em relação aos movimentos inorgânicos a novidade não é a sua existência desde a década de sessenta do século XX. Surgem, desaparecem, enfim. Nós valorizamos - e iremos ainda fazer alterações às teses, é verdade. Estas manifestações dão uma contribuição positiva. Embora nós reafirmemos com muita força a importância não da aglutinação mas da convergência com a luta organizada da CGTP, que leve a afirmar objectivos, para que a sua mais-valia não se perca, não se fique pelo grito. Mas o que é importante aqui sublinhar é a participação de sectores, de camadas, de homens, mulheres e jovens, até aqui neutros ou neutralizados, que atingidos por esta política sentem a necessidade de se manifestar, levando à convergência dessa frente social de luta. Eu fiquei surpreendido com a participação de sectores como as farmácias e a restauração, que há um ano e meio era impensável que estivessem neste processo de protesto e de luta.

O PCP chegou no passado a ser acusado de ser o motor da desordem. No dia 14 de Novembro vimos que a CGTP sai de cena e é depois que vem a desordem e que todas as instituições salvaguardam o papel da CGTP. O que mudou? 

É precipitado colocar nos movimentos inorgânicos uma responsabilidade. O que se pode considerar é que houve ali uma provocação organizada.

Por quem? 


Eu não conheço, mas o ministro da Administração Interna disse que foi obra de profissionais da provocação, lá terá as suas informações. Aquilo que verificamos é que é um exagero dizer que um punhado de provocadores perfeitamente organizados integra os movimentos inorgânicos. Agora, o que é um facto é que aquelas acções serviram para esbater os efeitos da manifestação e da própria greve geral.

Nas teses, o PCP tem só um parágrafo sobre trabalho precário. E fazem uma grande defesa do sindicalismo, mas o PCP sabe que os trabalhadores precários têm grande dificuldade em sindicalizar-se e têm já organizações próprias. Também aqui parece que o PCP deixa o campo para o BE. Há deliberadamente um mundo que vos passa ao lado? 
Diferenciamo-nos do BE nessa matéria, por uma questão de fundo. Nós consideramos que ser precário não é um estatuto nem um atestado. São trabalhadores como quaisquer outros, que têm vínculos precários, fragilizados. E a nossa luta não deve ser para tratar os precários como uma classe, mas pelo contrário, lutar para que eles tenham direitos como quaisquer outros, nomeadamente o vínculo efectivo. Isto começou com os contratos a prazo e, de repente, de excepção passou a ser a regra. É uma questão de conceito, mas nós recusamo-nos a passar o atestado de precários ad aeternum a um trabalhador que é vítima de um vínculo precário.

E a luta dessas pessoas deve ser feita em sindicatos clássicos, é isso? 

É o direito que qualquer trabalhador tem de ter um trabalho com segurança e com direitos. Não abdicamos de lutar para que esse trabalhador tenha um estatuto de corpo inteiro. Não o aceitamos como uma inevitabilidade. A cada trabalhador efectivo corresponde um vínculo efectivo, com direitos.

A democracia está em risco na Europa e em Portugal, é uma conclusão que se tira das teses? 

Dizemos que decorrem grandes perigos para a democracia. Falo da limitação de direitos, de liberdades. A democracia já fica à porta de muitas empresas. No plano político, vemos as alterações à lei do financiamento dos partidos e das campanhas.

As teses fazem um violentíssimo ataque à Entidade das Contas. Não é um exagero um partido tão cioso do respeito das instituições fazer este ataque quando no fundo o que está em causa é o controlo do gasto de dinheiros públicos? 

O PCP tem sido penalizado por ter a Festa do Avante!

Portanto, o PCP não quer ser sustentado só pelo Orçamento do Estado, quer autofinanciar-se. É isso? 
Apresentámos, durante anos, propostas para diminuir a subvenção do Estado. Defendemos menos dependência do Estado, menos subvenções, mas mais capacidade de iniciativa de recolha de fundos como militância.

O que poderia distinguir depois a Festa do Avante! dos jantares de militantes do PS e do PSD ou a capacidade de recolher fundos junto das empresas que são dos seus apoiantes? 

Consideramos que da nossa parte deve haver uma independência não só do Estado mas do capital.

Portanto, o PCP pode arrecadar em cafés, mas os outros não podem receber de empresas? Ou a lei pode permitir desde que isso seja transparente? 

A lei pode permitir. Mas essas fontes de financiamento devem ser declaradas.

Jerónimo de Sousa defende a reindustrialização, mas determinada pelo Estado. E afirma que a União Europeia "é determinada pelo capital financeiro"

O PCP tem como lema do Congresso a expressão "Democracia e Socialismo" e nas teses são patentes os elogios aos países comunistas do antigo Bloco de Leste. O secretário-geral, Jerónimo de Sousa, garante que o PCP continua a não seguir modelos de socialismo, mas sublinha que "nenhum erro, nenhuma violação ou deformação da legalidade socialista", que tenha acontecido nos últimos anos do regime, esconde "uma evolução espantosa" conseguida nos países socialistas em termos de direitos económicos e sociais.

Nas teses mantêm a recusa do federalismo. E dizem explicitamente que a União Europeia "não é reformável". A conclusão é que deve acabar? 

A Europa de coesão, solidária, que foi proclamada como objectivo, hoje não é nada disso. Hoje, a Europa é determinada pelo capital financeiro e pelos grandes grupos económicos. Está determinada por um directório de potências. Esta Europa, com estes objectivos e esta composição, não corresponde aos interesses da população. Esta Europa não é reformável.

Querem um retorno aos princípios fundadores? 


Defendemos uma Europa de coesão, de respeito mútuo, de afirmação da soberania de cada nação.

Portugal deve sair do euro? 

Hoje, a questão não é só a saída, mas a ameaça de expulsão. Não colocamos a saída como objectivo. Para nós, a questão é Portugal precisar de um desenvolvimento soberano, compete ao povo português decidir o seu devir colectivo.

Nas teses mantêm que não há modelos para o socialismo, posição que o PCP tem desde 1988. Mas agora dizem que houve "trágicas derrotas do socialismo na União Soviética e nos países do Leste da Europa" e que na URSS houve uma "nova sociedade" que conheceu "tempos de desenvolvimento". Isto, há vinte anos, não era dito. Há um aligeirar do discurso crítico do PCP em relação ao que foi o socialismo do Leste? 
Mantemos como actuais as análises dos erros e dos desvios do socialismo. Mas há duas questões que gostaria de sublinhar nos tempos que correm. Primeiro, a constatação de que com a Revolução de Outubro houve avanços fascinantes em termos de direitos dos trabalhadores, da igualdade entre mulheres e homens, de Segurança Social, de avanços económicos. E nenhum erro, nenhuma violação ou deformação da legalidade socialista, que se verificou posteriormente, pode esconder que naquela região houve uma evolução espantosa em termos de direitos económicos e sociais, que levaram os próprios países capitalistas, nomeadamente os mais próximos, a terem de reconhecer direitos, para não se porem em contraponto com a própria sociedade socialista em construção.

E hoje? 


Agora, a estes anos de distância desde as derrotas do socialismo, é possível hoje, perante um capitalismo sem freio nos dentes, que procura recuperar todas as parcelas de domínio perdido nesses países - mas também à escala planetária, porque a ofensiva é global -, é possível falar do trágico que foi para essas populações essas derrotas.

A China tem hoje comportamentos idênticos aos dos países capitalistas, nomeadamente na aquisição de empresas de outros países e no empréstimo de dinheiro a juros idênticos aos do mercado capitalista. O que é que distingue a nível externo os dois modelos? 

Em relação às privatizações em Portugal, a nossa posição é clara, seja para capital chinês, seja para capital alemão, seja para capital brasileiro, seja para capital angolano, estamos em profundo desacordo, não por causa da origem, mas da privatização em si, do prejuízo que representa para o país a entrega desses sectores estratégicos ao estrangeiro.

E a China? 
Há relações comerciais no quadro de um mercado capitalista, isso tem de ser considerado. O problema não é os chineses defenderem os interesses da China, o problema é que os governos portugueses não têm defendido os interesses de Portugal.

Por falar em interesses de Portugal, o ministro da Economia recuperou a ideia da reindustrialização do país. É um caminho para Portugal? 

É decisivo. É isso que referimos quando falamos na necessidade do aumento da produção, no aumento de riqueza. Portugal tem recursos de subsolo que dariam para dois PIB. Estamos a falar de ouro, de prata, de cobre. Temos o maior filão de cobre da União Europeia, mas que é arrancado e transportado em bruto. Porque não é feita a transformação cá?

Então há um encontro de objectivos de reindustrialização entre o PCP e o PSD? 

O problema é que o ministro declara isso mas depois não faz nada.

De acordo com o PCP devia ser o Estado a fazer a reindustrialização, é isso? 


Obviamente. Por que é que o Estado não impõe que o cobre seja transformado no nosso país? Criando mais postos de trabalho, criando mais riqueza, criando mais-valia.

No Congresso, que novidades haverá na direcção? Está prevista renovação? Nomeadamente a subida ao CC dos novos deputados?

Está previsto que o Comité Central (CC) seja reduzido. Mas o Comité Central no próximo fim-de-semana vai propor a lista.

Tem 65 anos e é secretário-geral há oito. Quando vai ser substituído? 

Um dia. É uma tarefa de grande exigência. Mas o que considero é que num quando tão difícil como o que o nosso povo está a viver, num quadro de grande exigência de resposta, de resistência, pensando na construção de uma vida melhor, eu, com a idade que tenho, quero dizer que, independentemente das responsabilidades que possa ter no futuro ou não ter, a minha disposição é a de continuar a lutar pelos trabalhadores, pelo povo a que pertenço.

Não lhe estamos a chamar velho, mas o PCP defendeu o limite de 65 anos de idade na direcção da CGTP. Razão pela qual, por exemplo, Carvalho da Silva saiu da liderança. Esse princípio não devia ser defendido também para o PCP? 

Há uma diferença substancial. A CGTP é uma organização sindical em que os quadros são trabalhadores e o seu vínculo profissional termina aos 65 anos. E as direcções sindicais são feitas com trabalhadores no activo. Embora com 50 anos de descontos para a Segurança Social, mais dois de Guerra Colonial, já pudesse reformar-me, é uma opção [não o fazer]. E enquanto o meu partido entender que sou preciso, cá estarei.