quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Jaime Gralheiro

Uma Justa Homenagem

Aqui reproduzo na integra a intervenção de António Bica, nessa homenagem descrita em C de...



Notas sobre o político e escritor Jaime Gralheiro e a acção política em Lafões antes do 25 de Abril 

António Bica


Nas sociedades, mesmo pequenas como a de Lafões, há sempre quem queira maior participação dos cidadãos nos assuntos públicos para que seja mais justa, mais transparente e todos vivam melhor, mesmo que pouco a pouco. Os inconformados com a situação, seja ela qual for, são os que fazem avançar as sociedades.
O Jaime Gralheiro é um deles. Cheguei a S. Pedro pouco depois do meio da década de 1960 para estagiar com o Dr. Abílio Tavares, também um inconformado. Embora soubesse quem era o Jaime Gralheiro, fiquei a conhecê-lo melhor. 
Atento ao evoluir do país e do mundo, estava em processo de transição das baias da Igreja Católica para a procura livre do que mais se aproximará da verdade e do melhor para o mundo, o país e a região. 
É busca que nunca termina, que não há padrão para a verdade senão a ilusão dela quando se aceitam acriticamente construções dogmáticas, sejam religiosas ou políticas. E nessa busca, aquilo que em certo momento se considera o mais acertado no momento seguinte precisa de correcção, que tudo, as sociedades e as pessoas, sempre está em mudança.
Então, entre pouco depois de meados da década de 1960 e o 25 de Abril, durante quase 10 anos, o Jaime Gralheiro com outros em Lafões, em verdade não muitos, procuravam com o reduzido número dos inconformados do país mudar para melhor as condições políticas, sociais, culturais e económicas dele.
O que faziam não era muito, mas, juntos, com o impulso da evolução histórica, as consequências da desastrosa guerra colonial, o desenvolvimento económico do mundo sequente ao acelerar das novas tecnologias, a fuga para lá dos Pirinéus de muitas centenas de milhares de cidadãos entre os 20 e os 40 anos à procura de melhores condições de vida, a saída por acidente de Salazar do poder em 1968, procurámos ajudar ao avanço para as grandes mudanças políticas, económicas e sociais decorrentes do 25 de Abril de 1974.


As condições de vida em Portugal enquanto Salazar se manteve no poder não eram boas. 
               O ensino público, além do primário, só nas capitais de distrito era ministrado e em poucas mais cidades. Aos filhos dos que nelas não viviam estava vedada a sua frequência a não ser que a família dispusesse de meios para isso, mesmo que com sacrifício.
Todos os actos médicos e os medicamentos tinham que ser pagos. Os municípios, não o Estado, só asseguravam o pagamento deles aos que estivessem em condições de obter um certificado de indigência. A regra, quanto a saúde, entre a generalidade da população não abastada, era, quando adoecia, esperar que com caldos e chás o corpo se livrasse da doença. Só em casos extremos ia ao médico. 
               Com excepção dos funcionários públicos, poucos mais tinham direito a reforma. Quando se deixava de poder trabalhar, vivia-se do amparo dos filhos ou de outros familiares. Os que não tinham ninguém ou os familiares eram muito pobres corriam a região a pedir pelas portas. Quando fui criado, pelos anos de 1940 e 1950, todos os dias batiam à porta das casas da minha aldeia e das outras pobres a pedir. Era a reforma que tinham. Para não incomodarem os que viviam nas vilas, como andavam descalços, era proibido andar nelas sem calçado.
              Um reduzido grupo de donos de bancos, da maior indústria e de grandes interesses comerciais, nomeadamente nas colónias, controlava a economia do país e sustentava o regime político. 
Quanto a liberdades vivia-se em Portugal tutelado pelo aparelho político e policial salazarista. Nenhum jornal se podia publicar nem escolher o seu director sem autorização prévia do governo. O que nele se publicasse tinha que ir a censura. Uma peça de teatro que se quisesse encenar tinha que passar também por ela. Se se publicasse um livro e a edição não agradasse ao regime era apreendido sem indemnização. As associações para fins culturais, de defesa de direitos profissionais, mesmo económicas como as cooperativas agrícolas estavam sujeitas a autorizações e outras interferências do governo. Todas as tentativas de associação, mesmo informais, que o regime suspeitasse visarem a discussão de interesses gerais dos cidadãos  eram reprimidas.
A Pide mantinha os cidadãos sob vigilância, pagando a vasta rede de informadores (os bufos) e era apoiada pelas informações das polícias, dos presidentes das Câmaras e até de alguns padres, que davam notícia do que lhes parecia ser actividade não conforme com o regime político, especialmente sobre os cidadãos considerados da “oposição”.
A actividade política contra o salazarismo era ferozmente reprimida. Os cidadãos não podiam manifestar discordância das políticas do governo por qualquer forma (escrito,  manifestação pública pacífica e qualquer outra). Se o fizessem podiam ser presos, julgados por isso e demitidos de emprego público que tivessem como aconteceu a muitos dos melhores professores do país e outros funcionários.
 Não podiam ser providos em empregos públicos sem prévia informação não discordante da Pide. Podiam ser presos e mantidos sob prisão durante anos sem julgamento. Se fossem apresentados a tribunal pela Pide eram condenados, sendo julgamento feito em tribunais especiais para que o regime nomeava juízes que lhe davam garantia de condenar os acusados. 
             Até ao fim da segunda grande guerra o julgamento corria em tribunais militares. Depois, para fazer esquecer o empenhado apoio de Salazar aos regimes fascistas europeus, Alemanha e Itália, vencidos na guerra em 1945, ano em que decretou 3 dias de luto pelo suicídio de Hitler, passou o regime a simular a eleição dos deputados à chamada Assembleia Nacional, acabou com o campo de concentração do Tarrafal em Cabo Verde e criou tribunais especiais sem farda militar, mas sujeitos ao seu comando político, os tribunais plenários que julgavam, como se referiu, em estreita coordenação com a Pide.
As condenações nesses tribunais, sempre a penas de prisão, tinham a particularidade, ao arrepio da generalidade dos sistemas penais, de serem prorrogáveis sem limite e sem novo julgamento pelos mesmos tribunais.
Com a saída de Salazar do poder, depois de eu ter chegado a S. Pedro do Sul e de conhecer melhor o Jaime Gralheiro, o sucessor dele, Marcelo Caetano, mostrou alguma diferença em relação a Salazar. Embora tivesse sido homem do regime durante a juventude, como na natureza nada se repete, mostrou diferenças em relação ao velho ditador. A maior parte foi de cosmética, como a mudança do nome da Pide para Direcção Geral de Segurança, do partido único, União Nacional, para Acção Nacional Popular e o disfarce da censura em exame prévio.
Os que, como Jaime Gralheiro, se não conformavam em Lafões com a opressão política do Estado Novo e o atraso social e económico de Portugal, lutavam como podiam, procurando evitar quanto possível a prisão, para que a organização política do país viesse a assentar na legitimação do poder nacional e do autárquico pelo voto periódico de todos os cidadãos, com liberdade de opinião, de expressão dela por todos os meios, de associação e de manifestação pacífica, que são indispensáveis para os cidadãos poderem exprimir-se comunicando uns com os outros, formando opinião sobre os assuntos públicos, a forma de governo que querem e quem deve exercer o poder por tempo limitado. 
              Esta era a frente principal de luta, que é indispensável que as condições de organização política de um país assegurem aos cidadãos as liberdades fundamentais para esclarecidamente escolherem a organização política por que optam e os governantes para exercer o poder por tempo limitado, serem culturalmente criativos e economicamente activos, que do desenvolvimento da economia de uma sociedade resulta o seu progresso.
O autoritarismo marcelista que sucedeu a Salazar quis, ao mesmo tempo que mantinha a ruinosa guerra colonial e a opressão política salazarista, promover algum desenvolvimento social, criando escolas públicas nas sedes de vários concelhos para ensino pós-primário e estendendo timidamente aos agricultores condições para virem a beneficiar de reforma modesta. Por outro lado tentou fazer algum desenvolvimento económico do país, embora não em todo, procurando concentrá-lo em Sines. Não acabou com os instrumentos de repressão política (a Pide, a União Nacional, a Legião, os tribunais plenários, a censura, a prorrogação sem limite das sentenças de prisão), mas abrandou um pouco os métodos repressivos, o que permitiu a intensificação e o alargamento da acção política da oposição ao regime em todo o país, e também em Lafões.
O Cénico, encabeçado por Jaime Gralheiro, desenvolveu notável actividade teatral e mobilizou bom número de jovens em S. Pedro do Sul. 
               Lutou-se contra a proibição das videiras americanas e do comércio do seu vinho sujeito até então a repressão, luta que teve maior expressão no concelho de Oliveira de Frades; contra a cobrança da taxa sobre a produção de vinho que se fez com êxito; pela devolução dos baldios aos povos com início da luta em Talhadas do Vouga, junto a Lafões, tendo-se estendido a várias freguesias da região e vizinhas, luta de que veio a nascer depois do 25 de Abril a legislação da restituição dos baldios aos povos e os movimentos pela aplicação dessa legislação em que muito se veio a destacar o Jaime Gralheiro no patrocínio de acções judiciais e em edições comentadas da lei dos baldios. 
              Apoiou-se um acampamento de jovens progressistas em Lafões que queriam conhecer as condições de vida nos campos da nossa região, tendo participado nele, entre vários outros, os conhecidos Padre Fanhais, o actual reitor da Universidade Católica, Manuel Braga da Cruz, o autor da cantiga de mobilização política “Canta canta amigo canta”, composta no acampamento por António Macedo, que morreu pouco depois do 25 de Abril.
Deu-se apoio, com empenhada participação do Jaime Gralheiro, aos musicólogos Giacometi e Lopes Graça no notável trabalho de recolha em Lafões da sua música popular de grande qualidade que já então era interpretada pela voz timbrada de Isabel Silvestre e hoje continua a ser no esforço, com Alexandrino Matos, de passar essa memória cultural às novas gerações. 
O Jaime Gralheiro destacou-se nesse período sobretudo na luta política e na cultural. Participou nas sempre simuladas eleições coreografadas pelo regime para a eleição da chamada Assembleia Nacional, não na esperança de democratizar o regime, que não era reformável, mas com o objectivo de esclarecimento político, de divulgação das ideias democráticas e de denúncia da fraude eleitoral. Por ter participado, por ocasião de uma delas, em reunião em Lamego foi julgado com vários outros democratas do distrito sob acusação de reunião ilegal. Fomos defendidos com êxito pelo Dr. Abílio Tavares e absolvidos. 
Desenvolveu com grupo notável de jovens sampedrenses relevante acção de criação cultural, escrevendo teatro e levando-o à cena em luta difícil contra a censura e outros entraves. Jaime Gralheiro recentemente escreveu o livro “A Caminho do Nunca” onde aflora um pouco dessa actividade em Lafões. Vale a pena lê-lo.


Para concluir e ilustrar com um caso de luta política de contornos jurídicos refiro sucintamente a colaboração com o Jaime Gralheiro na defesa do direito do povo de uma das aldeias de Paços de Vilharigues (Vouzela), onde nasci, à água da nascente conhecida por Fonte Juiz que em 1925 fora dividida por todo o povo com o baldio em que espontaneamente brotava da terra. Porque a água nasce longe da povoação onde moram os donos, nunca fora usada desde a partilha em 1925. 
              Em 1955, era eu rapazinho, antes de se completarem 30 anos sobre a data da sua partilha os rapazes da terra na casa dos 20 anos, convencidos que decorridos 30 anos sobre a divisão da água sem uso dela os donos perdiam o direito a favor do da sorte onde a água nascia, organizaram-se para abrir rego a encaminhá-la para as terras da povoação, exercendo a posse correspondente ao seu direito.
O dono da sorte era o maior lavrador da terra, embora também não rico. Logo que soube da iniciativa, falou com os rapazes: “Eu também vou, que não quero o que não me pertence. Marcamos a ida para o dia em que se completam os 30 anos. Partimos de minha casa ao romper o dia.” No dia aprazado, no lusco-fusco da manhã, lá estavam os rapazes munidos de enxadas e alviões em casa do lavrador. Esperava-os à porta da adega, junto à eira, onde sobre mesa improvisada se estendiam queijos da Serra, presunto e vinho do Porto.
Disse-lhes: “Vamos à bucha e à pinga a ganhar força para o trabalho e o caminho, que é longo e íngreme.” O presunto era bom, o queijo melhor e o vinho dos tonéis do lavrador não desmerecia. Quando todos estavam alegres e descuidados, com o sol a subir a mais de um quarto do céu, o lavrador trouxe mais queijos e abriu as garrafas do vinho do Porto de que todos beberam sem restrição.
Chegou o meio-dia e o lavrador alvitrou: “Com este calor melhor é fazermos sesta à sombra desta figueira até refrescar.”
 Era noite cerrada quando acordaram. Já não era possível usar a água antes de decorridos os fatídicos 30 anos que assim se haviam completado. Foram para casa de orelha murcha. No dia seguinte o lavrador gabava-se: “A água agora é minha.” Os donos dela sentiram-se ludibriados e a contragosto esforçaram-se por se conformar.


Os anos correram sem que ninguém usasse a água da Fonte Juiz. Depois fui estudar leis para Coimbra no início da década de 1960. Quando estudei o direito das águas, ensinava-se que o direito sobre elas era de propriedade como sobre uma terra ou uma casa, não se perdendo o direito pelo não uso por certo prazo, então 30 anos, mas só pelo uso por outra pessoa. Na Universidade de Lisboa ensinava-se que o direito a água que nasce no prédio de outro se perdia pelo não uso por 30 anos por se entender que o direito à água não era de propriedade, mas restrição ao de propriedade sobre o prédio em que nascia . 
Em consequência desta divergência de interpretação das normas legais do Código Civil de 1867, o chamado Código de Seabra, os licenciados em Direito pela Universidade de Lisboa seguiam sobre o direito às águas opinião diferente da dos licenciados por Coimbra. 
Quando, nos anos de 1960, estudei em Coimbra o direito das águas, informei os agricultores da minha aldeia, em Paços de Vilharigues, de que a água da Fonte Juiz continuava a ser das pessoas que a haviam partilhado em 1925 e dos seus herdeiros, dado que ninguém a usara desde então.
Os agricultores da terra, que não se haviam conformado com o ludíbrio do dono da sorte em que a água nascia, ouviram a informação com agrado. 
Mas como era de muitos e cada um não tinha mais do que um quinhão de 12 horas de mês a mês, nenhum tomou a iniciativa de mobilizar os outros para a encaminhar para as terras cultivadas, o que então já era possível a preço moderado com o início da produção dos tubos de plástico. 
Talvez porque o lavrador, em cuja sorte a água da Fonte Juiz nascia, tivesse ouvido que havia dúvida sobre o seu direito. Mas não ousou afrontar o povo com captação e condução dela.
Entretanto o filho dele, já depois de Marcelo Caetano chegar ao poder, foi nomeado chefe político local da Acção Nacional Popular, antiga União Nacional. Isso deu-lhe ousio. Tirou conselho com o mais considerado advogado da região, o Dr. Abílio Tavares, que se licenciara em Lisboa. Ele entendeu que a água da Fonte Juiz lhe pertencia por terem decorrido desde 1925 muito mais de 30 anos sem a água ter uso e nascer na sua sorte.
Seguro com essa opinião e a influência política do filho, o lavrador, que era velho e cauteloso, meteu no negócio outro da terra na intenção de dividir os habitantes, oferecendo-lhe metade da água contra o trabalho e despesas de captação e condução dela para as terras de ambos.


Mal as obras começaram, pelo fim da década de 1960, fui procurado pelos donos da água: “Então? A água é nossa ou não, como se diz que é opinião do dr. Abílio Tavares?” Expliquei a divergência entre as universidades de Lisboa e Coimbra. Esclareci que, pelo então recente Código Civil que entrara em vigor em 1968, não havia dúvida de que não se perdia o direito à água pelo não uso por certo tempo, o que reforçava a interpretação da Universidade de Coimbra das normas sobre o direito das águas do revogado Código de 1867 aplicável ao caso e a probabilidade de o tribunal reconhecer que a água da Fonte Juiz lhes continuava a pertencer. 
Não os informei de que o juiz da comarca de Oliveira de Frades, que era a competente e não influenciável, se licenciara em Coimbra e por isso seguiria muito provavelmente opinião favorável ao direito deles e de que, para se evitar o risco de a acção vir a ser julgada no Tribunal da Relação por colectivo cuja maioria se tivesse licenciado em Lisboa, haveria que lhe dar valor que não permitisse recurso com esperança de o Dr. Abílio Tavares não o impugnar.


Os agricultores da povoação mobilizaram-se para propor acção no tribunal de Oliveira de Frades contra o lavrador dono da sorte em que a água nascia com o pedido de que fosse reconhecido o direito deles à água. Seguro da firmeza deles, falei com o Dr. Jaime Gralheiro, que, tendo-se licenciado em Coimbra, tinha sobre o assunto opinião igual à minha. Não quis ser eu a representar os agricultores por ter recentemente acabado o meu estágio de advocacia com o Dr. Abílio Tavares e não querer estar na acção em campo oposto.  
O Jaime Gralheiro aceitou. Os agricultores falaram-lhe, passaram procuração e a acção foi proposta.


 O agricultor dono da sorte onde a água nascia alegou que a água lhe pertencia por não ter sido usada pelos que em 1925 a partilharam e os seus sucessores durante muito mais de 30 anos, o que era verdade. Alegou mais, contra a verdade, que regava a água havia mais de 30 anos. Mas o expediente do uso da água não resultou por falta de prova. Perdeu-a, como se esperava, sem direito a recurso. 


No dia seguinte os agricultores da povoação foram pela manhã, de enxada ao ombro, abrir o rego que quiseram abrir em 1955 agora para serem estendidos os tubos a conduzir a água para as suas terras, a cantar “Canta canta amigo canta”, canção que bem conheciam porque fora criada na sua terra no acampamento dos jovens havia poucos meses.
Limito-me a referir o percurso político do Jaime Gralheiro na década anterior ao 25 de Abril, para não me alongar e por, dadas as condições políticas de então, ser, talvez, menos conhecido. O posterior ao 25 de Abril foi de grande actividade a nível nacional e local e é sobejamente conhecido. 
Espero que o Jaime Gralheiro continue activo e não deixe de escrever, que bem o sabe fazer. 


Longa vida para ele.

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