O PACTO GERMANO-SOVIÉTICO E QUESTÕES LIGADAS
Resposta de Annie Lacroix-Riz1 a Bernard Fischer, 30 de
Agosto de 2009
Annie LACROIX-RIZ é professora de história contemporânea na Universidade Paris VII-Denis Diderot
(Publicada em 23 de Abril
de 2010 na reedição de “Escolha da Derrota”)
Caro camarada,
O tambor do Pacto
germano-soviético começou a ressoar, depois do de Katyn, há alguns meses e em
todas as ocasiões possíveis (não
faltam aniversários e comemorações). A senhora Marie Jégo, cujos dias e noites são assombradas pelos
bolcheviques, quer isso venha ou não a propósito, ironizava ontem no Le Monde sobre «Moscovo
tentado a reabilitar o pacto», decidindo assim, sem hesitação : «Assinado
a 23 de Agosto de 1939 por Viatcheslav
Molotov e Joachim von Ribbentrop, os ministros dos negócios estrangeiros da
URSS e da Alemanha nazi, o
pacto “de não-agressão” transformou-se rapidamente numa aliança entre Estaline
e Hitler, prontos a
despedaçar a Europa do Este e do Norte, desde a Finlândia aos países bálticos,
passando pela Polónia.». Este
discurso, tão categórico quanto errado, está conforme com a prosa que o Le Monde
tem servido há muito tempo,
com o seu dossiê elaborado para o quinquagésimo aniversário da morte de Estaline, em Março de
2003, a marcar um dos picos desta actividade notável do «quotidiano de
referência».
Mas não basta a um
empregado do «quotidiano dos negócios Vedomosti […,] o jornalista Andreï Kolesnikov », entrar
no género psico-trágico («O cocktail Molotov-Von Ribbentrop está em
detonação lenta.
Ele explode na cabeça das
pessoas. Ele mutila a consciência da nação russa») para transformar uma jornalista antissoviética
em historiadora séria.
Em ‘A
escolha da derrota: as elites francesas nos anos 1930’, Paris,
Armand Colin, nova edição completa e revista, 2010, 679 p., e
em ‘De Munique a Vichy, o assassinato da 3.ª República, 1938-1940’, Paris,
Armand Colin, 2008, 408 p.,
estudei profundamente as questões internacionais levantadas pela tua
correspondência de hoje: o que tu chamas «a
questão das consequências efectivas [das] relações [germano-soviéticas], do ponto de vista de um
certo número de países europeus geograficamente intermediários, como, por
exemplo, a Finlândia, a Polónia e
a Checoslováquia, é a famosa questão da assinatura dos acordos de Munique e da anexação da região dos
Sudetas pela Alemanha de Hitler. Na Polónia, há uma questão de verdade
histórica importante, conexa com a
questão dos massacres de Katyn. Na União Soviética, há a questão das relações entre Estaline e o
estado-maior do exército vermelho, por exemplo, com um certo Toukhatchevsky» – o
qual foi incontestavelmente
culpado de alta traição (ver os quadros das matérias e o índex, e, sobre o caso Toukhatchevski stricto
sensu, ‘A escolha da derrota’, p. 393-399).
Sobre Katyn, poderá
ler-se, com proveito, a interpretação do meu colega britânico Geoffrey Roberts,
em ‘As guerras de Staline: Da
Guerra Mundial à Guerra-fria, 1939-1953’, New Haven & London : Yale
University Press, 2006. Esta excelente
obra, como todas as que escrevera anteriormente (‘A
aliança contraditória: o pacto de Staline com
Hitler’, Londres, Tauris, 1989, e ‘A União Soviética e as origens
da Segunda Guerra Mundial.
As relações
russo-germânicas e o caminho para a guerra, 1933-1941’, New
York, Saint Martin’s Press, 1995), não está
infelizmente traduzida em francês, enquanto que todos os livros contra Estaline
(do nascimento à morte) e
contra quem o rodeava são traduzidos no ano seguinte ao da sua publicação: designadamente, os
desvarios horrorizantes do publicista Simon Sebag Montefiore sobre ‘A corte
do czar vermelho’ ou ‘O jovem
Estaline’. No mesmo sentido vai a longa recensão, «Geoffrey
Roberts, as Guerras de Estaline: Da Guerra
mundial à Guerra-fria, 1939-1953: um acontecimento editorial», que
coloquei no meu sítio (www.historiographie.info) em 2007, aqui junto, «Geoffrey Roberts, Stalin’s Wars, From World War to Cold War, 1939-1953: un
événement éditorial».
Encontrarás também no meu
artigo «O PCF entre o ataque e a ‘mea culpa’: Junho de 1940 e a
resistência comunista» (www.historiographie.info),
igualmente junto ao meu correio electrónico, elementos de resposta à polémica tão incansável
quanto infundada sobre o pacto germano-soviético e as suas consequências sobre o movimento operário
internacional, na ocorrência o francês. Este artigo visava demonstrar a
desonestidade de uma enésima operação
mediática orientada para uma imensa algazarra sobre o livro, lamentável pela ausência de informação e
de documentação original, de Jean-Pierre Besse e Claude Pennetier: «Junho
40, a negociação secreta. Os
comunistas franceses e as autoridades alemãs». Venerado pelos Le Monde
e Libération (entre outros), ele tinha logicamente encontrado grande crédito junto do PCF,
acostumado – depois de haver ganho a
sua respeitabilidade de membro da «esquerda europeia» (e renunciado, da mesma forma, à sua identidade
comunista) – a expiar a culpa do seu honroso passado. ‘De
Munique a Vichy’, largamente consagrado às
questões internas (e, nomeadamente, à repressão anticomunista), trata do aspecto «francês» do pacto
germano-soviético no período que antecede o daquele artigo.
Como o lembrei ontem a um
amigo belga que me solicitava a propósito do pacto germano-soviético, não sem evocar as presumidas “perversões”
do estalinismo (termo intelectual minimalista, no jogo dos crimes e horrores estalinianos com
que a população francesa, “europeia”, etc. é embriagada quase quotidianamente), eu não consegui fazer
publicar a crítica do livro muito importante de Roberts “nos presumidos Cadernos
de história crítica,
herdeiros (extraviados) dos Cadernos de história do instituto de
investigações marxistas, que acompanhei não há muito,
porque a dita revista crítica não podia suportar ‘cobrir’ a minha indulgência
para com os Sovietes: o que
escrevi sobre a Polónia dos coronéis e o seu abominável papel entre as duas
guerras (‘A
escolha da derrota’ e ‘De Munique a Vichy’), o que Roberts, Carley e eu
própria mostramos do isolamento diplomático e militar da
URSS na época da ‘guerra de Inverno’ dá uma clara e diferente visão da alegada ‘matança’ que a URSS
deveria reconhecer e explicar, se a tivesse cometido (eu conservo uma espécie
de dúvida, tendo em
consideração, por um lado, a natureza da decisão e o seu carácter estritamente
único e, por outro lado, a ausência
total de informação arquivística internacional sobre estes acontecimentos do
início de 1940 – mas, talvez
tenha ‘falhado’ os bons correios); da mesma forma que deveria reconhecer e
explicar, ao menos depois da guerra,
o incontestável acordo secreto sobre a ‘partilha’ germano-soviética de 1939 das zonas de influência,
incluindo a Polónia)” (extracto de um correio de 29 de Agosto).
Também tinha em vista,
acima, a excelente obra do historiador americano-canadiano Michael Jabara
Carley, ‘1939,a
aliança que nunca o foi e o início da 2.ª Guerra Mundial’, Chicago, Ivan R.
Dee, 1999, felizmente traduzida, ‘1939 : a
aliança da última chance: uma reinterpretação das origens da Segunda Guerra
mundial’, Impressão da Universidade
de Montréal, 2001, de resto disponível em linha. Carley detesta o comissário do Povo dos Negócios
Estrangeiros, Molotov, ao qual atribui, segundo a moda do tempo, todos os
caracteres terríveis do estaliniano
limitado; ele tem muitas saudades do seu predecessor Litvinov, afastado a 3 de
Maio de 1939 por causa do
comportamento dos anglo-franceses e das suas próprias ilusões sobre estes
últimos; mas ele reconhece, tanto
quanto Roberts (e eu-mesma), a ausência de responsabilidade dos Sovietes no acontecimento de 23 de
Agosto de 1939, e a manutenção estrita da linha exterior soviética na era
Molotov.
Soube ontem, depois de ter
redigido a mensagem acima citada, que as autoridades russas acabavam de publicar uma série de
documentos sobre a política externa polaca, depois de 1934. Julguei perceber
que estes textos continham os
acordos secretos entre Berlim e Varsóvia, consecutivos à assinatura do “acordo
de amizade” germano-polaco de
26 de Janeiro de 1934 (concluído para dez anos). Lê-los-ei com tanto mais prazer quanto os arquivos
franceses e alemães (principalmente) dos anos 1933-1939 já me deram bastantes detalhes. Lembremos que,
junto de Pilsudski, o decisor oficial polaco, o coronel Beck, era um notório assalariado de Berlim,
segundo os arquivos originais diplomáticos e militares franceses (isso também é
claro nos [arquivos - NT]
alemães publicados), e que o continuou a ser mesmo para além da derrota
ignominiosa da Polónia (tão
ignominiosa como o desastre francês). Pilsudski fizera-o chefe da política
externa polaca depois do Outono de 1932,
e Beck, em Maio de 1935, sucedeu ao seu benfeitor (então falecido) à cabeça da ditadura. Estes dois
oficiais de um exército em ruínas desde as suas origens (ver o texto junto dos
arquivos, «O exército polaco no
início dos anos vinte») não eram mais do que mandatários dos privilegiados
polacos, como «o príncipe Janusch
Radziwill, um dos maiores proprietários de terras, não só da Polónia, mas de
toda a Europa»: unido não só
aos Junker2 alemães, mas também aos grandes siderúrgicos alemães, este nobre de nascença alemã foi um
dos principais inspiradores de uma política pró-alemã, que significava a morte
da Polónia enquanto Estado, e
de uma ditadura perfeitamente adaptada, sobretudo depois do golpe de Estado de Pilsudski, de 1926, no
«interesse dos grandes proprietários» (EMADB, informação militar Depas 866, 17 de Junho de 1935, 7 N 3024
; «Principais personalidades que poderá reencontrar» o MAE (Laval, durante a sua viagem a Varsóvia),
nota junta à carta 247 de Laroche a Laval, Varsóvia, 10 de Abril de 1935, URSS 1918-1940, 982, arquivos
do MAE).
A Polónia do trio infernal
Beck-Pilsudski-Radziwill passava para um pivô do «cordão sanitário»
franco-inglês, o que lhe valeu, em
1920-1921, a outorga, graças à ajuda militar francesa, via Weygand (e seu
adjunto de Gaulle), da Galícia
oriental, no entanto prometida pela «Linha [étnica] Curzon» à Rússia.
Transformou-se em caniche do Reich
hitleriano, a partir do acordo de 26 de Janeiro de 1934, sem abdicar das suas
funções de cão de guarda do «cordão
sanitário» útil a todos, incluindo os «Aliados» ocidentais; nem de garante da submissão do povo polaco a
uma das ditaduras (regime particularmente conveniente à missão de «cordão sanitário») mais
sangrentas de entre as duas guerras: no rico conjunto do leste europeu francês,
Varsóvia disputava, neste âmbito, o
primeiro lugar com Belgrado e Bucareste; sabe-se, além disso, qual a
importância que Paris, campeão dos
«direitos do Homem», tanto na altura como hoje, deu à «democracia burguesa» reinante em Praga.
Todavia, o rolo compressor da propaganda insistiu, depois de 1990, que a Europa oriental tinha
«reencontrado», com a queda da URSS e a libertação consecutiva das nações
satélites escravas, «a democracia»
que perdera «depois de 1945» (1918-1939, um paraíso democrático; 1939-1945, o nirvana democrático).
Encontraremos nas duas
obras acima citadas a confirmação das minhas afirmações, que podem parecer brutais e, designadamente,
informação documentada sobre a participação directa dos coronéis polacos, com Beck à cabeça - «abutres»
ou « hienas», segundo os amáveis qualificativos dos seus cúmplices alemães, franceses, ingleses, etc.
-, na liquidação da Checoslováquia, na da Pequena Entente (teoricamente)
antialemã, que agrupava a
Checoslováquia, a Jugoslávia e a Roménia, e na perseguição dos judeus da
Polónia.
Juntarei a isso precisões
suplementares e apresentarei novas fontes na minha contribuição destinada ao colóquio internacional de
Varsóvia, previsto para meados de Outubro, sobre a campanha da Polónia de 1939 («A Polónia na estratégia
política e militar da França (Outubro 1938-Agosto 1939») , colóquio que terá a participação de Geoffrey
Roberts.
Que a política polaca
tenha sido conduzida numa total cumplicidade com o Reich hitleriano não atenua
em nada, como o mostram os
trabalhos referidos, a esmagadora responsabilidade dos dirigentes económicos e políticos da França,
ébrios de antissovietismo, tão prontos a baixarem-se perante a Alemanha como os
seus homólogos polacos, e
actores de primeiro plano, desde 1938, na perseguição dos judeus da Polónia refugiados em França
(entre outros judeus estrangeiros), questão tratada em ‘De Munique a Vichy’.
Note-se que os dirigentes republicanos» deram toda a liberdade aos fascistas italianos e nazis alemães
para perseguirem os seus
inimigos no território francês, respectivamente, depois de 1922-1923 e 1933
(ver ‘A escolha da derrota’). Isto
vale, evidentemente, para os Apaziguadores de Londres e de Washington. A Polónia era uma pequena
potência submetida às grandes potências imperialistas, incluindo a França de então, e as
responsabilidades que os seus dirigentes assumiram – 1° nos crimes cometidos
contra os povos eslavos (Polacos
incluídos) e contra os judeus e 2° no seu desaparecimento enquanto Estado, de
1939 à 1945 – foram amplamente
partilhadas pelos seus tutores estrangeiros. Para citar apenas um exemplo, não era só a Polónia que tinha
o poder de interditar ao exército vermelho a entrada em território polaco em
1938 (para salvar a
Checoslováquia), ou em 1939 (para salvar a própria Polónia), mas também os seus
mestres franceses e ingleses, que,
além disso, tinham «garantido» no papel as suas fronteiras, em Março-Abril de 1939, e que a encorajaram
a tratar Moscovo como «lacaio», segundo a expressão de Jdanov (Junho de 1939). Exactamente da
mesma forma que, por opção de classe e por receio de verem as suas fronteiras salvas pelo exército
vermelho, as elites checoslovacas cederam às pressões exercidas por Paris e
Londres, para obter delas a
destruição do seu próprio Estado.
Os dirigentes russos
parecem dispostos, por razões que lhes dizem respeito, a abordar a sua história nacional de entre as duas
guerras e da Segunda Guerra mundial de uma forma mais séria do que o fizeram depois, não só do fim da
URSS, mas também da era kroutchoviana. Forma que tratava com um alto grau de fantasia a história dos
anos 1920-1950, como o tinha observado, desde 1964, em ‘A Rússia em guerra’, o excelente jornalista e
escritor britânico Alexander Werth, russófilo de longa data, pai de Nicolas, o
papa francês de uma
«sovietologia» erigida em história dos «crimes de Estaline». A historiadora que
eu sou regozija-se com esta
viragem, perceptível desde há algum tempo, e aprecia, pelo menos, o que se
anuncia como o fim da fase de
intoxicação pura e simples que caracterizou os três últimos decénios, no que se refere à URSS e à sua
história. A cidadã também. As duas esperam com impaciência saber como a
ideologia dominante nos vai dar
conta, em Maio-Junho de 2010, do 70.º aniversário do Desastre francês de Maio- Junho de 1940, sobre o
qual tanto há a dizer.
Cordialmente,
Annie Lacroix-Riz
1 Annie LACROIX-RIZ é professora
de história contemporânea na Universidade Paris VII-Denis Diderot
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