segunda-feira, 8 de agosto de 2011
Somália
Nos últimos meses, temos sido bombardeados com notícias sobre a Somália e os seus «piratas».
Embora repetinto algumas das informações dadas no vídeo, recordo uma entrevista de Mahad Omar, médico, de origem somali, que vive em Londres.
Diz Mahad Omar: "Nós não lhes chamamos «piratas somalis». Chamamos-lhes «patriotas somalis» ou «guarda costeira da Somália». Como devem saber há uma presença maciça e ilegal de navios europeus e asiáticos que despejam resíduos tóxicos e nucleares nas águas da Somália e fazem pesca ilegal, e os pescadores somalis não conseguiam obter peixe. Queixámo-nos à União Europeia e às Nações Unidas e ninguém nos escutou".
RG: Foi então que os pescadores somalis e a população decidiu defender a sua costa.
Na Somália tivemos uma guerra civil de cerca de dezoito anos, que teve diferentes fases. A vantagem geográfica da Somália tem atraído muitos interesses estrangeiros – sobretudo dos Estados Unidos, da União Europeia, da Liga Árabe e dos restantes países africanos. A CIA tem financiado alguns dos mais importantes «senhores da guerra» somalis, fracções da guerra civil de base tribal, e forneceram, a seguir ao 11 de Setembro, até 18 milhões de dólares para travarem a guerra pelo governo americano. Como estes senhores da guerra têm aterrorizado os civis somalis, a população comum da Somália virou-se contra eles e houve uma revolução social contra esses senhores da guerra. Quem liderou a revolução foram os Tribunais Islâmicos, que restauraram a paz na Somália. Em resposta a isto tivemos a invasão americana e de tropas terrestres etíopes que desmantelaram os Tribunais Islâmicos. Os Tribunais Islâmicos tinham conseguido com sucesso controlar a pirataria, ao terem criado uma Guarda Costeira formal e legítima. Mas uma vez que os Tribunais Islâmicos somalis foram desmantelados, deixou de haver um governo em funcionamento que possa efectivamente representar os somalis internacionalmente.
RG: A narrativa transmitida sobre o assunto nos media dominantes insiste contudo na existência de relações íntimas entre a «pirataria», a União dos Tribunais Islâmicos, as milícias Al-Shabab e a Al-Qaeda…
Isso não é verdade. Trata-se de pescadores absolutamente normais. A verdadeira pirataria aqui é a americana, que com os seus cargueiros, os seus porta-contentores, os seus porta-aviões, está a destruir a vida destes pescadores, impedidos de pescar os peixes do oceano Índico e do mar Vermelho da Somália. A verdadeira pirataria, aquela que está a agir cobardemente, é a americana, não a das forças navais somalis. E vocês estão cientes de que, para justificar tais acções, é necessário produzir ilusões, enganos que impeçam as pessoas de ver e ouvir a verdade. A Somália teria de facto um governo, mas o que nós temos é cargueiros americanos estacionados ao largo da costa da Somália e literalmente destruindo comunidades piscatórias, usando mísseis balísticos, aviões B53 e C130, bombardeiros enormes destruindo aldeias minúsculas.
Mas ainda assim não conseguem conter os somalis comuns e impedi-los de defender as suas águas. E acreditem ou não, aqueles pequenos somalis, nos seus barquinhos … temos orgulho neles. E todos os que morram são heróis.
RG: Quais são os papéis desempenhados por outros Estados africanos nesta situação? Sabemos que foi criada por um conjunto de países uma articulação designada «Comando Djibuti» visando o combate à «pirataria» …
Todos os países desenvolvidos têm lá forças e não conseguem conter o problema. O Quénia e o Djibuti estão a tentar aproveitar-se da situação pondo-se ao serviço dessas forças. O Djibuti é um pequeno país que vive da assistência dos Estados Unidos e da França, e estes países têm lá bases militares dada a natureza estratégica daquela zona. A Somália está a viver um cerco. É por isso que estão a tentar pressionar a Somália, mas acreditem ou não há uma revolução a ter lugar, é imparável, vai continuar, não importa o que possam fazer o Quénia, o Djibuti, os Estados Unidos, vai acontecer. Por que as pessoas querem.
Aqueles que estão na Somália, em Mogadíscio – por exemplo, a minha mãe vive lá, falei com ela a noite passada – estão fartos da interferência de outros países e das superpotências e estão cansados do que outros estão a impor-lhes. Por isso estão a organizar-se com o objectivo de tentar efectivamente legitimar o seu governo que não está em funções.
RG: Enquanto somali, o que sente quando vê sectores da esquerda europeia a defender uma invasão da Somália?
É triste.
RG: Pensa que a «pirataria» é uma desculpa para parar a revolução e a resistência?
Sim. A Somália é um dos países mais estratégicos de África. É a porta das traseiras do Médio Oriente, permite controlar os fluxos de petróleo – cerca de 40% do petróleo do Mundo atravessa o mar Vermelho e o oceano Índico da Somália. Os «piratas» são na verdade forças legítimas de resistência.
E o pirata sou eu?
Quando em 2004 as câmaras revelaram ao mundo as tragédias do tsunami, uma outra tragédia permanecia bem longe das câmaras. Desta feita, a Natureza não era a causa, mas apenas a sua revelação: no litoral da Somália o tsunami fazia aparecer à luz do dia aquilo que as democracias ciosas dos seus Estados de direito haviam escondido bem no fundo do mar. Toneladas de lixo tóxico e radioactivo foram dar às costas do país. Quem busca saber a origem desse flagelo não precisa ir muito longe. Nas palavras de Nick Nuttall, porta-voz do Programa do Ambiente das Nações Unidas, explica a questão de uma forma muito simples e clara: despejar lixo tóxico em África custa cerca de 8 dólares a tonelada, ao passo que tratar de forma segura o mesmo lixo nos EUA ou na Europa custa cerca de 1000 dólares a tonelada. O negócio é demasiado lucrativo e pouco importa a galeria de horrores que origina, como todas as doenças ligadas a este mercado. Business as usual. Assim, as vidas de milhares de pessoas, incluindo a da jornalista italiana Ilaria Alpi e do operador de câmara Miran Hrovatin, da RAI 3, mortos na Somália enquanto investigavam a relação do Exército italiano e dos programas de ajuda ao desenvolvimento da Itália com o tráfico de armas e a transferência de lixo tóxico para esse país, podem ser contabilizadas nesse negócio «legítimo». Acrescentamos a isso um facto também bastante conhecido nessas paragens: as águas da Somália, ricas em peixe, são também ricas em verdadeiros piratas europeus dedicados à pesca ilegal. Assim, a verdade primordial calada é que a principal acção dos chamados piratas da Somália (pescadores somalis) é fazer as vezes de guarda costeira contra a pesca ilegal que fornece o sushi europeu. Foi contra essa guarda costeira informal que 70 nações mobilizaram os seus vasos de guerra na caça aos «piratas» das lanchas que aparecem nas nossas televisões.
Renato Guedes
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