3 de dezembro de 2014
Mário Soares
Personalidade, primeiro responsável pela situação a que chegámos
Retirado do artigo publicado em 1 de dezembro de 2014 no Blogue 5 dias.net
Momentos de lucidez
12 de Janeiro de 2009 por Ricardo Santos Pinto- See more at: http://5dias.net/2009/01/12/momentos-de-lucidez/#sthash.7FwqVx2T.dpuf
Mário Soares, num dos momentos de lucidez que ainda vai tendo, veio chamar a atenção do Governo, na última semana, para a voz da rua. A lucidez, uma das suas maiores qualidades durante uma longa carreira política.
A lucidez que lhe permitiu escapar à PIDE e passar um bom par de anos, num exílio dourado, em hotéis de luxo de Paris. A lucidez que lhe permitiu conduzir da forma «brilhante» que se viu o processo de descolonização. A lucidez que lhe permitiu conseguir que os Estados Unidos financiassem o PS durante os primeiros anos da Democracia. A lucidez que o fez meter o socialismo na gaveta durante a sua experiência governativa. A lucidez que lhe permitiu governar sem ler os «dossiers». A lucidez que lhe permitiu não voltar a ser primeiro-ministro depois de tão fantástico desempenho no cargo. A lucidez que lhe permitiu pôr-se a jeito para ser agredido na Marinha Grande e, dessa forma, vitimizar-se aos olhos da opinião pública e vencer as eleições presidenciais. A lucidez que lhe permitiu, após a vitória nessas eleições, fundar um grupo empresarial, a Emaudio, com «testas de ferro» no comando e um conjunto de negócios obscuros que envolveram grandes magnatas internacionais.
A lucidez que lhe permitiu receber do Estado, ao longo dos últimos anos, donativos e subsídios superiores a um milhão de contos. A lucidez que lhe permitiu receber, entre os vários subsídios, um de quinhentos mil contos, do Governo Guterres, para a criação de um auditório, uma biblioteca e um arquivo num edifício cedido pela Câmara de Lisboa. A lucidez que lhe permitiu receber, entre 1995 e 2005, uma subvenção anual da Câmara Municipal de Lisboa, na qual o seu filho era Vereador e Presidente. A lucidez que lhe permitiu que o Estado lhe arrendasse e lhe pagasse um gabinete, a que tinha direito como ex-Presidente da República, na… Fundação Mário Soares. A lucidez que lhe permite que, ainda hoje, a Fundação Mário Soares receba quase 4 mil euros mensais da Câmara Municipal de Leiria. A lucidez que lhe permitiu fazer obras no Colégio Moderno, propriedade da família, sem licença municipal, numa altura em que o Presidente era… João Soares. A lucidez que lhe permitiu silenciar, através de pressões sobre o director do «Público», José Manuel Fernandes, a investigação jornalística que José António Cerejo começara a publicar sobre o tema. A lucidez que lhe permitiu candidatar-se a Presidente do Parlamento Europeu e chamar dona de casa, durante a campanha, à vencedora Nicole Fontaine. A lucidez que lhe permitiu considerar José Sócrates «o pior do guterrismo» e ignorar hoje em dia tal frase como se nada fosse. A lucidez que lhe permitiu passar por cima de um amigo, Manuel Alegre, para concorrer às eleições presidenciais uma última vez. A lucidez que lhe permitiu, então, fazer mais um frete ao Partido Socialista. A lucidez que lhe permitiu ler os artigos «O Polvo» de Joaquim Vieira na «Grande Reportagem», baseados no livro de Rui Mateus, e assistir, logo a seguir, ao despedimento do jornalista e ao fim da revista. A lucidez que lhe permitiu passar incólume depois de apelar ao voto no filho, em pleno dia de eleições, nas últimas Autárquicas. No final de uma vida de lucidez, o que resta a Mário Soares? Resta um punhado de momentos em que a lucidez vem e vai. Vem e vai. Vem e vai. Vai… e não volta mais.
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12 de novembro de 2014
21 de outubro de 2014
Contribuição para a História do Cristianismo Primitivo
Friederich Engels (1895)
Primeira Edição: Die Neue Zeit, em 1894-95
I
A história do cristianismo primitivo oferece curiosos pontos de contato com o movimento operário moderno. Como este, o cristianismo era, na origem, o movimento dos oprimidos: apareceu primeiro como a religião dos escravos e dos libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos povos subjugados ou dispersos por Roma. Os dois, o cristianismo como o socialismo operário, pregam uma libertação próxima da servidão e da miséria; o cristianismo transpõe essa libertação para o Além, numa vida depois da morte, no céu; o socialismo coloca-a no mundo, numa transformação da sociedade. Os dois são perseguidos e encurralados, os seus aderentes são proscritos e submetidos a leis de exceção, uns como inimigos do gênero humano, os outros como inimigos do governo, da religião, da família, da ordem social. E, apesar de todas as perseguições, e mesmo diretamente servidos por elas, um e outro abrem caminho vitoriosamente. Três séculos depois do seu nascimento, o cristianismo é reconhecido como a religião do Estado e do Império romano: em menos de sessenta anos, o socialismo conquistou uma posição tal que o seu triunfo definitivo está absolutamente assegurado.
Conseqüentemente, se o Sr. Professor A. Menger, no seu “Direito ao Produto Integral do Trabalho”, se espanta de que, sob os imperadores romanos, tendo em vista a colossal centralização das riquezas e os sofrimentos infinitos da classe trabalhadora, composta essencialmente de escravos, “o socialismo não tenha sido implantado depois da queda do Império romano ocidental”, é porque precisamente não vê que esse “socialismo”, na medida em que era possível na época, existia efetivamente e chegava ao poder. . . com o cristianismo. Só que o cristianismo, como tinha fatalmente de ser, considerando as condições históricas, não queria a transformação social neste mundo, mas no Além, no céu, na vida eterna depois da morte, nomillenium eminente.
Já na Idade Média o paralelismo dos dois fenômenos se impõe, quando dos primeiros levantamentos dos camponeses oprimidos e, sobretudo, dos plebeus das cidades. Esses levantamentos, tal como todos os movimentos de massas na Idade Média, tiveram necessariamente uma máscara religiosa; aparecem como restaurações do cristianismo primitivo em conseqüência de uma degenerescência crescente, mas atrás da exaltação religiosa escondem-se, regularmente, interesses muito positivos deste mundo.
Isso transparecia de uma maneira grandiosa na organização dos taboritas da Boêmia sob João Zizka, de gloriosa memória. Mas este traço presiste através de toda a Idade Média, até que desaparece pouco a pouco, depois da guerra dos camponeses na Alemanha, para reaparecer entre os operários comunistas depois de 1830. Os comunistas revolucionários franceses, tal como Weitling e os seus aderentes, afirmavam-se ligados ao cristianismo primitivo muito antes de Renan ter dito:
Se quiserem fazer uma idéia das primeiras comunidades cristãs, observem uma seção local da Associação Internacional de Trabalhadores.
O homem de letras francês que, graças a uma exploração da crítica bíblica alemã, sem exemplo mesmo no jornalismo moderno, confeccionou o seu romance sobre a história da Igreja, “As Origens do Cristianismo”, não sabia tudo o que havia de verdade na sua frase. Eu queria ver o antigo internacionalista capaz de ler, por exemplo, a segunda “Epístola aos Coríntios”, atribuída a Paulo, sem que, pelo menos num ponto, antigas feridas não reabrissem nele.
A “Epístola” inteira, a partir do VIII capítulo, ecoa da eterna queixa demasiado bem conhecida: “As cotizações não entram.” Por volta de 1865, quantos, entre os mais zelosos propagandistas, não teriam apertado a mão do autor desta carta, quem quer que ele fosse, com uma simpática inteligência, murmurando-lhe ao ouvido: “Então, irmão, também isso te aconteceu a ti!” Também nós teríamos muito a dizer acerca disso — também na nossa associação pululam os coríntios —, essas cotizações que não apareciam, que, inalcançáveis, giravam diante dos nossos olhos de Tântalo, eis o que constituía os famosos milhões da Internacional.
Uma das nossas melhores fontes sobre os primeiros cristãos é Luciano de Samosata, o Voltaire da antigüidade clássica, que mantinha a mesma atitude cética em relação a todas as espécies de superstições religiosas e que, portanto, não tinha motivos — nem por crença pagã nem por política — para tratar os cristãos diferentemente de qualquer outra associação religiosa. Pelo contrário, acusa a todos da sua superstição, tanto aos adoradores deJúpiter como aos adoradores de Cristo: do seu ponto de vista rasamente racionalista, um gênero de superstição é tão inepto como o outro. Esta testemunha, de qualquer maneira imparcial, conta, entre outras coisas, a biografia de um aventureiro, Peregrinus, que se chamava na realidade Proteu de Parium sobre o Helesponto. O dito Peregrinus começou na sua juventude, na Armênia, por um adultério. Foi apanhado em flagrante delito e linchado segundo o costume do país. Felizmente conseguiu escapar, estrangulou Parium, o seu velho pai, e teve de fugir.
Foi por essa época que se fez instruir na admirável religião dos cristãos, contactando na Palestina com alguns dos seus padres e escribas. Que vos hei-de dizer acerca disso? Esse homem depressa lhes fez ver que eles não passavam de crianças; profeta, tiasarco, chefe de assembléia, tudo ele foi sozinho, interpretando os seus livros, explicando-os, compondo-os por iniciativa própria. Por isso muita gente o olhava como a um deus, um legislador, um pontífice, igual a esse que é honrado na Palestina, onde foi posto numa cruz por ter introduzido esse novo culto entre os homens. Proteu, tendo por este motivo sido detido, foi posto na prisão. Desde o momento que foi posto a ferros, os cristãos, considerando-se como presos nele, tudo fizeram para o libertar; mas, não o conseguindo, renderam-lhe pelo menos toda a espécie de honras com um zelo e uma dedicação infatigáveis. Desde a manhã, viam-se à volta da prisão uma multidão de mulheres velhas, de viúvas, de órfãos. Os principais chefes da seita passavam a noite junto dele, depois de terem corrompido os carcereiros: para lá levavam as suas refeições e liam os seus livros santos; e o virtuoso Peregrinus, ele ainda se chamava assim, era por eles tratado de novo Sócrates. Não é tudo; várias cidades da Ásia lhe enviaram deputados em nome de cristãos, para lhe prestar assistência, lhe servirem de apoio, de advogados e de consoladores. Era inacreditável a dedicação em tais ocorrências; para tudo dizer, nada lhes custava. Desse modo Peregrinus, sob o pretexto da sua prisão, viu chegarem grandes quantidades de dinheiro e acumulou muito. Esses infelizes acreditam que são imortais e que viverão eternamente; em conseqüência, desprezam os suplícios e entregam-se voluntariamente à morte. O seu primeiro legislador ainda os convenceu de que eles são todos irmãos. Desde que mudaram de culto, renunciaram aos deuses gregos e adoram o sofista crucificado de quem seguem as leis. Desprezam igualmente todos os bens e põem-nos em comum, pela fé completa que têm nas suas palavras. De forma que, se aparece entre eles um impostor, um patife decidido, ele não terá dificuldade em enriquecer rapidamente, rindo-se por trás da sua simplicidade. Contudo, Peregrinus depressa foi libertado pelo governador da Síria.
Depois de outras aventuras, diz-se:
Peregrinus retomou, pois, a sua vida errante, acompanhado nas suas vagabundagens por um grupo de cristãos que lhe servem de satélites e lhe subvencionam abundantemente as suas necessidades. Ele fez-se assim alimentar durante algum tempo. Mas depois, tendo violado alguns dos seus preceitos (tinham-no visto comer carne proibida), foi abandonado pelo seu cortejo e reduzido à pobreza.
Quantas recordações de juventude acordam em mim ao ler esta passagem de Luciano. Eis primeiro o “profeta Albrecht”, que por volta de 1840 e durante alguns anos tornava pouco seguras — à letra — as comunidades comunistas de Weittling na Suíça. Era um homem grande e forte, que percorria a Suíça a pé, à procura de um auditório para o seu novo evangelho da libertação do mundo. No fim de contas, parece ter sido um trapalhão bastante inofensivo e morreu cedo. Eis o seu sucessor, menos inofensivo, o “Dr.” Jorge Kuhlmann de Holstein, que aproveitou o tempo em que Weittling esteve na prisão para converter os comunistas da Suíça francesa ao seu próprio evangelho e que, por um tempo, o conseguiu tão bem que conquistou até o mais espiritual e ao mesmo tempo o mais boêmio de todos eles, August Becker. Depressa Kuhlmann dava conferências que foram publicadas em Gênova em 1845 sob o título: “O Novo Mundo ou o Reino do Espírito Sobre a Terra. Anunciação”. E na introdução, redigida, segundo toda a probabilidade, porBecker, lê-se.
Faltava um homem na boca de quem todos os nossos sofrimentos, todas as nossas esperanças e todas as nossas aspirações, numa palavra, tudo o que agita mais profundamente o nosso tempo, encontrasse uma voz... Esse homem que a nossa época esperava, apareceu. É o Dr. Jorge Kuhlmann de Holstein. Ele surgiu com a doutrina do novo mundo ou do reino do espírito na realidade.
Será necessário dizer que essa doutrina do novo mundo não passava do mais banal sentimentalismo, traduzido em fraseologia semibíblica à Lamennais e debitada com arrogância de profeta? O que não impedia os bons discípulos de Weittling de andarem com atenções para com esse charlatão, tal como os cristãos da Ásia tinham feito em relação a Peregrinus. Eles, que, de ordinário, eram arquidemocratas e igualitários, a ponto de alimentarem desconfianças inextinguíveis para com todo o mestre-escola, todo o jornalista, todos aqueles que não eram operários manuais, como se eles fossem outros tantos “sábios” procurando explorá-los, eles deixaram-se persuadir por esse Kuhlmann, com os seus atavios de melodrama, de que, no “novo mundo”, o mais sábio, id est Kuhlmann, regulamentaria a repartição dos prazeres e que, portanto, já no velho mundo, os discípulos deviam fornecer alqueires de prazeres ao mais sábio e contentarem-se com migalhas. E Peregrinus-Kuhlmann viveu na alegria e na abundância... enquanto isso durou. Na verdade tal não durou muito; o descontentamento crescente dos céticos e dos incrédulos, as ameaças de perseguição do governo, puseram fim ao reino do espírito em Lausanne; Kuhlmann desapareceu.
Exemplos análogos virão às dezenas à memória daqueles que conheceram por experiência o começo do movimento operário na Europa. Na hora atual, casos tão extremos tornaram-se impossíveis, pelo menos nos grandes centros; mas em localidades perdidas, em que o movimento conquista um terreno virgem, um qualquer Peregrinus deste tipo poderia ainda conseguir um sucesso momentâneo e relativo. E, tal como em todos os países aflui para o partido operário toda a gente que já nada tem a esperar do mundo oficial, ou que nele se queimou — tal como os adversários da vacinação, os vegetarianos, os antivivecionistas, os partidários da medicina dos simples, os pregadores das congregações dissidentes a quem as ovelhas fugiram, os autores de novas teorias acerca da origem do mundo, os inventores falhados ou infelizes, as vítimas de reais ou imaginárias irregularidades a quem a burocracia chama “refilões inúteis”, os honestos imbecis e os desonestos impostores —, o mesmo acontecia com o cristianismo. Todos os elementos que o processo de dissolução do antigo mundo tinha atirado, sucessivamente, para o círculo de atração do cristianismo, o único elemento que resistia a essa dissolução — precisamente porque se tratava de um produto especial — e que, portanto, subsistia e crescia, enquanto que os outros elementos não passavam de moscas efêmeras. Todas as exaltações, extravagâncias, loucuras ou golpes sujos que foram tentados em relação às jovens comunidades cristãs, todas, temporariamente e em certas localidades, encontraram ouvidos atentos e crentes dóceis. E, tal como os comunistas das nossas primeiras comunidades, os primeiros cristãos eram de uma credulidade espantosa em relação a tudo que parecia convir à sua doutrina, de modo que não podemos saber realmente se, dos numerosos escritos que Peregrinus compôs para a cristandade, não haverá, aqui e ali, qualquer fragmento que tenha escapado para o nosso novo Testamento.
II
A crítica bíblica alemã, até agora a única base científica do nosso conhecimento da história do cristianismo primitivo, seguiu uma dupla tendência.
Uma dessas tendências é representada pela escola de Tubingue, à qual, em sentido lato, pertence também D. F. Strauss. Ela vai tão longe no exame crítico quanto uma escola teológica poderia ir. Admite que os quatro Evangelhos não são comunicações de testemunhas oculares, mas arranjos ulteriores de escritos perdidos, e que, no máximo, quatro das Epístolas atribuídas a S. Paulo são autênticas etc. Ela afasta da narração histórica, como inadmissíveis, todos os milagres e todas as contradições; do que resta, ela “procura salvar tudo o que pode ser salvo” e, por aí, transparece claramente o seu caráter de escola teológica. E é graças a essa escola que Renan, o qual, em grande parte, se apóia nela, pôde, aplicando o mesmo método, operar ainda muitos outros “salvamentos”. Além de numerosas exposições mais que duvidosas do Novo Testamento, ele quer ainda impor-nos uma quantidade de lendas de mártires como historicamente autenticadas. Em todo o caso, tudo o que a escola de Tubingue rejeita do Novo Testamento como apócrifo, ou como não sendo histórico, pode ser considerado como definitivamente afastado pela ciência.
A outra tendência é representada por um único homem: Bruno Bauer. O seu grande mérito é ter, impiedosamente, criticado os Evangelhos e as Epístolas apostólicas, ter sido o primeiro a encarar seriamente o exame dos elementos não só judaicos e greco-alexandrinos, mas também gregos e greco-romanos que permitiram ao cristianismo tornar-se uma religião universal. A lenda do cristianismo nascido integralmente do judaísmo, partindo da Palestina para conquistar o mundo com uma dogmática e uma ética traçadas nas suas grandes linhas, tornou-se impossível depois de Bruno Bauer; a partir de então ela pode, no máximo, continuar a vegetar nas faculdades teológicas e no espírito de quem quer “conservar a religião para o povo”, mesmo à custa da ciência. Na formação do cristianismo, tal como foi elevado à categoria de religião de Estado por Constantino, a Escola de Philon de Alexandria e a filosofia vulgar greco-romana — platônica e sobretudo estóica — desempenharam importante papel. Essa contribuição está longe de ter sido estabelecida nos detalhes, mas o fato está demonstrado, e tal deve-se, sobretudo, a Bruno Bauer; ele lançou as bases da prova de que o cristianismo não foi importado de fora, da Judéia, e imposto ao mundo greco-romano, mas que é, pelo menos na forma que adquiriu como religião universal, o mais autêntico produto desse mundo. Naturalmente que, nesse trabalho, Bauer exagerou bastante, como acontece a todos que combatem preconceitos inveterados. Na intenção de determinar, mesmo do ponto de vista literário, a influência de Philon, e sobretudo de Sêneca, sobre o cristianismo nascente, e de representar formalmente os autores do Novo Testamento como plagiários desses filósofos, é obrigado a retardar o aparecimento da nova religião em meio século, a rejeitar as narrativas de historiadores romanos que a isso se opõem e, em geral, a tomar graves liberdades com a história conhecida. Segundo ele, o cristianismo como tal só aparece sob os imperadores Flavianos, a literatura do Novo Testamento só sob Adriano, Antonino e Marco Aurélio. Portanto, Bauer faz desaparecer todo o fundo histórico para as narrativas do Novo Testamento relativas a Jesus e aos seus discípulos; resolvem-se em lendas em que as fases de desenvolvimento interno e os conflitos morais das primeiras comunidades são transpostos e atribuídos a personagens mais ou menos fictícias. Não são a Galiléia nem Jerusalém, segundo Bauer, os lugares de nascimento da nova religião, mas sim Alexandria e Roma.
Assim, se no resíduo, que não contesta, da história e da literatura do Novo Testamento, a escola de Tubingue nos oferece o extremo máximo do que a ciência pode, ainda nos nossos dias, aceitar como estando sujeito a controvérsia, Bruno Bauer representa o máximo de contestação que ela se pode permitir. A verdade situa-se entre estes extremos. Que esta, com os nossos meios atuais, seja suscetível de ser determinada, eis o que parece bem problemático. Novas descobertas, como em Roma, no Oriente e sobretudo no Egito, darão um contributo muito mais decisivo do que toda a crítica.
Ora, existe no Novo Testamento um único livro de que é possível, com margem de alguns meses, fixar a data da redação; ele deve ter sido escrito entre junho de 67 e janeiro ou abril de 68; é um livro que, por conseqüência, pertence aos mais longínquos tempos cristãos, que reflete as idéias dessa época com a mais ingênua sinceridade e na língua idiomática que lhe corresponde; que, de início, é, na minha opinião, muito mais importante para determinar o que foi realmente o cristianismo primitivo que todo o resto do Novo Testamento, muito posterior em data na sua redação atual. Esse livro é o que se chama o apocalipse de João; e como, ainda por cima, esse livro, em aparência o mais obscuro de toda a Bíblia, se tornou hoje, graças à crítica alemã, o mais compreensível e o mais transparente de todos, proponho-me falar dele aos nossos leitores.
Basta uma olhadela sobre esse livro para nos apercebermos do estado de exaltação não só do autor mas também do “meio” em que vivia. O nosso “Apocalipse” não é o único da sua espécie e do seu tempo. Do ano 164 antes da nossa era, data do primeiro que chegou até nós — o livro de Daniel —, até cerca de 250 da nossa era, data aproximativa do “Carmen” de “Comodiano, Renan não conta menos de 15 “Apocalipses” clássicos chegados até nós, sem falar das imitações ulteriores. (Cito Renan porque o seu livro é o mais acessível e o mais conhecido fora dos círculos dos especialistas.) Foi uma época em que, em Roma e na Grécia, e muito mais ainda na Ásia Menor, na Síria e no Egito, uma mistura absolutamente casual das mais crassas superstições dos mais diversos povos era aceita sem exame e completada por piedosas fraudes e por um charlatanismo direto, em que os milagres, os êxtases, as visões, a adivinhação, a alquimia, a cabala e outras bruxarias ocultas ocupavam o primeiro lugar. Foi nessa atmosfera que o cristianismo primitivo nasceu, e ainda numa classe mais do que qualquer outra acessível a essas quimeras. Assim, os gnósticos cristãos do Egito, como o provam, entre outras coisas, o papiro de Leyde, dedicaram-se, no século II da época cristã, fortemente à alquimia, e incorporaram noções de alquimia nas suas doutrinas. E os “mathe matici” caldeus e judeus que, segundo Tácito, foram por duas vezes, sob Cláudio e ainda sob Vittelius, expulsos de Roma por magia, as únicas “astúcias” de geometria a que se dedicavam eram aquelas que encontraremos em pleno no “Apocalipse” de João.
A isto acrescenta-se que todos os apocalipses se julgam no direito de enganar os seus leitores. Não só são, geralmente, escritos por outras pessoas — na maioria mais recentes — diferentes dos pretensos autores, por exemplo o livro de Daniel, o livro de Enoch, os “Apocalipses” de Esdras, de Baruch, de Juda etc., os livros sibilinos, como no fundo não profetizam senão coisas conhecidas há muito tempo e perfeitamente conhecidas do verdadeiro autor. Foi assim que no ano de 164, pouco tempo antes da morte de Antiochus Epifano, o autor do livro de Daniel, que era suposto viver na época de Nabucodonosor, fez predizer a Daniel a subida e o declínio da hegemonia da Pérsia e da Macedônia, e o começo do Império mundial de Roma, para preparar os seus leitores, por essa prova dos seus dons proféticos, a aceitar a sua profecia final: que o povo de Israel ultrapassará todos os seus sofrimentos e será, enfim, vitorioso. Assim, se o “Apocalipse” de João fosse realmente obra do autor pretendido, constituiria a única exceção na literatura apocalíptica.
O João que se propõe para autor era em todo o caso um homem muito considerado entre os cristãos da Ásia Menor. O tom das cartas às sete Igrejas é disso garantia. Poderia pois admitir-se que fosse o apóstolo João cuja existência histórica, se não é absolutamente atestada, é pelo menos muito possível. E se esse apóstolo fosse efetivamente o autor, não se poderia pretender melhor para a nossa tese. Seria a melhor prova de que o cristianismo desse livro é o verdadeiro cristianismo primitivo. Está provado, diga-se de passagem, que o “Apocalipse” não é do mesmo autor do Evangelho ou das três “Epístolas” atribuídas a João.
O “Apocalipse” compõe-se de uma série de visões. Na primeira, o Cristo aparece, vestido de padre, caminhando entre sete castiçais de ouro, que representam as sete Igrejas da Ásia e dita a “João” cartas aos sete “anjos” dessas Igrejas da Ásia. Desde o início, a diferença manifesta-se gritante entre este cristianismo e a religião universal de Constantino formulada pelo concílio de Nicéia. A Trindade não só é desconhecida como constitui uma impossibilidade. No lugar do Espírito Santo, único ulterior, encontramos os “sete espíritos de Deus” extraídos pelos rabinos de Isaías, XI, dois; Jesus Cristo é o filho de Deus, o primeiro e o último, o alfa e o ômega, mas de modo nenhum Deus ou igual a Deus: pelo contrário, ele é “o começo da criação de Deus”, portanto uma emanação de Deus existente de toda a eternidade, mas subordinada, análoga aos sete espíritos acima mencionados. No capítulo XV, 3, os mártires, no céu, “cantam o cântico de Moisés, o servidor de Deus, e o cântico do cordeiro” para a glorificação de Deus. Jesus Cristo aparece, pois, aqui, não somente como subordinado a Deus, mas, de certa maneira, colocado no mesmo plano que Moisés. Jesus Cristo foi crucificado em Jerusalém (XI, 8), mas ressuscitou (1, 5, 18); é o “cordeiro” que foi sacrificado pelos pecados do mundo e com o sangue do qual os fiéis de todos os povos e de todas as línguas são perdoados por Deus. Encontramos aqui a concepção fundamental que permitiu ao cristianismo realizar-se como religião universal. A noção de que os deuses, ofendidos pelas ações dos homens, podiam ser acalmados por sacrifícios, era uma idéia comum a todas as religiões dos Semitas e dos Europeus; a primeira idéia revolucionária fundamental do cristianismo (extraída da escola de Philon) era que, pelo único grande sacrifício voluntário de um mediador, os pecados de todos os tempos de todos os homens eram expiados de uma vez para sempre. . . para os fiéis. De tal modo que desaparecia a necessidade de qualquer sacrifício ulterior e, portanto, a base de numerosas cerimônias religiosas. Ora, a libertação de cerimônias que entravavam ou proibiam o comércio com homens de crenças diferentes era a condição primeira de uma religião universal. E, contudo, o hábito dos sacrifícios estava tão enraizado nos hábitos populares que o catolicismo — que retomou tantos costumes pagãos — julgou útil considerá-lo, introduzindo pelo menos o simbólico sacrifício da missa. Por outro lado, nenhum vestígio, no nosso livro, do dogma do pecado original.
O que sobretudo caracteriza estas cartas, bem como o livro inteiro, é que nunca, nem em parte alguma, vem à idéia do autor designar-se, a ele e aos seus correligionários, de outra maneira senão como. . . Judeus. Aos sectários de Esmirna e de Filadélfia, contra os quais se ergue, ele acusa: “Eles dizem-se Judeus, mas não o são, pertencem sim a uma sinagoga de Satã”; e, dos de Pérgamo, diz:
Estão ligados a Balaam, que ensinava a Balak a criar toda a espécie de dificuldades aos filhos de Israel, para que eles comessem carnes sacrificadas aos ídolos e para que se dedicassem à impudícia.
Não encontramos, pois, aqui, cristãos conscientes, mas pessoas que se consideram Judeus: o seu judaísmo, sem dúvida, é uma nova fase do desenvolvimento do antigo: é precisamente por isso que é o único verdadeiro. É por isso que, quando da aparição dos santos diante do trono de Deus, vêm em primeiro lugar 144.000 Judeus, 12.000 de cada tribo, é só depois a inumerável multidão de pagãos convertidos a esse judaísmo renovado. O nosso autor, no ano 69 da nossa era, estava bem longe de pensar que representava uma fase completamente nova da evolução religiosa, destinada a tornar-se um dos elementos mais revolucionários na história do espírito humano.
Vemos, pois, que o cristianismo de então, que não tinha ainda consciência de si, estava a mil léguas da religião universal, dogmaticamente desenhada pelo concílio de Nicéia; impossível reconhecer esse nesta. Nem a dogmática, nem a ética do cristianismo ulterior, se encontram; em compensação, há o sentimento de que se está em luta com toda a gente e se sairá vencedor dessa luta; um ardor belicoso e uma certeza de vencer que desapareceram completamente nos cristãos dos nossos dias e não se reencontra senão no outro pólo da sociedade, entre os socialistas.
De fato, a luta contra um mundo que inicialmente levou a melhor e a luta simultânea dos inovadores entre si são comuns aos dois; aos cristãos primitivos e aos socialistas. Os dois grandes movimentos não são feitos por chefes e profetas — ainda que os profetas não faltem, quer num, quer no outro —, são movimentos de massas. E todo o movimento de massas é no começo necessariamente confuso; confuso porque todo o pensamento de massas se move, primeiro, em contradições, porque lhe falta clareza e coerência; confuso ainda precisamente por causa do papel que, nos começos, nele desempenham os profetas. Esta confusão manifesta-se na formação de numerosas seitas que se combatem entre si pelo menos com tanto empenho como o que dedicam ao comum inimigo exterior. Isto passava-se assim no cristianismo primitivo; passa-se da mesma maneira nos começos do movimento socialista, por mais aflitivo que isso seja para as honestas pessoas bem intencionadas que pregavam a união, quando a união não era possível.
Será que, por exemplo, a coesão da Internacional era devida a um dogma unitário? De forma nenhuma. Encontravam-se lá comunistas segundo a tradição francesa anterior a 1848, que, por sua vez, representavam cambiantes diferentes; comunistas da escola de Weittling; outros ainda pertencendo à liga regenerada dos comunistas; proudhonianos, que eram o elemento preponderante na França e na Bélgica; blanquistas; o Partido Operário Alemão; enfim, anarquistas bakouninistas, que, por momentos, dominaram na Espanha e na Itália; e estes eram só os grupos principais. A partir da fundação da Internacional, foi preciso um bom quarto de século para que se efetuasse definitivamente e por todo o lado a separação com os anarquistas, e se estabelecesse um acordo pelo menos acerca dos pontos de vista econômicos mais genéricos. E isso com os nossos meios de comunicação, os caminhos de ferro, os telégrafos, as monstruosas cidades industriais, a imprensa e as reuniões populares organizadas.
A mesma divisão em inumeráveis seitas entre os primeiros cristãos, divisão que era justamente o meio de organizar a discussão e de obter a unidade ulterior. Constatamo-la já nesse livro, indubitavelmente o mais antigo documento cristão, e o nosso autor condena-a com a mesma atitude implacável que emprega em relação ao mundo dos pecadores não cristãos. Eis primeiro os Nicolaites, em Éfeso, em Pérgamo; aqueles que se dizem Judeus mas que são a sinagoga de Satã, em Esmirna e Filadélfia; os aderentes da doutrina do falso profeta, chamado Balaam em Pérgamo; aqueles que dizem ser profetas mas que não o são, em Éfeso; enfim os partidários da falsa profetisa, chamada Jezabel, em Tiátira. Nada de mais preciso nos é dito acerca destas seitas; só dos sucessores de Balaam e de Jezabel se diz que comem carne sacrificada aos ídolos e que se entregam à impudícia.
Tentou-se imaginar que essas cinco seitas eram de cristãos paulinianos e todas essas cartas como sendo dirigidas contra Paulo, o falso apóstolo, o pretenso Balaam e “Nicolas”. Os argumentos, aliás dificilmente sustentáveis, encontram-se reunidos em Renan. “São Paulo” (Paris, 1869, páginas 303-305-367-370). Todos acabam por explicar as nossas cartas pelos “Atos dos Apóstolos” e pelas “Epístolas” ditas de Paulo, escritos que, pelo menos na sua redação atual, são sessenta anos posteriores ao “Apocalipse” e cujos dados a elas relativos são, pois, mais que duvidosos e que, além disso, se contradizem absolutamente entre si. Mas o que resolve a questão é que de modo algum o nosso autor se lembraria de dar a uma única e mesma seita cinco designações diferentes: duas só para a de Éfeso (falsos apóstolos e nicolaites), duas igualmente para Pérgamo (os balaamitas e os nicolaites), e ainda designando-as expressamente em cada caso como duas seitas diferentes. Contudo, nós não pensamos negar que entre essas seitas se pudessem encontrar elementos que hoje se considerariam como seitas paulinianas.
Nos dois passos em que se entra em pormenores, a acusação limita-se ao consumo de carnes sacrificadas aos ídolos e à impudícia, os dois pontos sobre os quais os Judeus — tanto os antigos como os Judeus cristãos — estavam em perpétua disputa com os pagãos convertidos. Carne oriunda dos sacrifícios pagãos era não só servida nos festins, em que recusar os pratos apresentados poderia parecer incoveniente e até perigoso, mas era também vendida nos mercados públicos, em que não era praticamente possível distinguir se era Koscher ou não. Por impudícia, os mesmos Judeus não entendiam apenas o comércio sexual fora do casamento, mas também o casamento entre parentes de graus proibidos pela lei judaica, ou ainda entre Judeus e pagãos, e é este o significado que geralmente é dado à palavra nos “Atos dos Apóstolos” (XV, 20 e 29). Mas o nosso João tem uma opinião própria mesmo no que dizia respeito ao comércio sexual entre os Judeus ortodoxos. Ele diz (XIC, 4) dos 144.000 Judeus celestes: “São aqueles que não se mancharam com mulheres, porque são virgens.” E, de fato, no céu do nosso João não existe uma única mulher. Ele pertencia, pois, a essa tendência que se manifesta igualmente noutros escritos do cristianismo primitivo e considera pecado o comércio sexual em geral. Se, além disso, considerarmos o fato de ele chamar a Roma a grande prostituída, com a qual os reis da Terra se entregaram à impudícia e foram embriagados pelo vinho da sua impudícia — e os seus mercadores enriqueceram pelo poder do seu luxo —, é-nos impossível considerar a palavra, nas cartas, no sentido estrito que a apologética teológica lhe queria atribuir, com o único fito de extrair uma confirmação para outras passagens do Novo Testamento. Muito pelo contrário. Essas passagens das cartas indicam claramente um fenômeno comum a todas as épocas profundamente perturbadas, isto é, que, ao mesmo tempo que se abalam todas as barreiras, procura-se relaxar os limites tradicionais do comércio sexual. Nos primeiros séculos cristãos, igualmente, ao lado do ascetismo que mortifica a carne, manifesta-se muitas vezes a tendência para estender a liberdade cristã às relações, mais ou menos livres, entre homens e mulheres. A mesma coisa aconteceu no movimento socialista moderno.
Que santa indignação não provocou, depois de 1830, na Alemanha de então — essa “piedosa nursery”, como lhe chama Heine — a reabilitação da carne são-simoniana! As mais intensamente indignadas foram as ordens aristocráticas que dominavam na época (nessa época não havia ainda classes entre nós) e que, tanto em Berlim como nas suas propriedades de campo, não sabiam viver sem uma reabilitação sempre reiterada da sua carne. Que diriam essas boas pessoas se tivessem conhecido Fourier, que oferece para a carne a perspectiva de muito mais alegrias!
Uma vez ultrapassado o utopismo, essas extravagâncias cederam lugar a noções mais racionais e, na realidade, bem mais radicais, e, desde que a Alemanha, da “piedosa nursery” de Heine que era, se tornou o centro do movimento socialista, toda a gente se ri da indignação hipócrita do piedoso mundo aristocrático.
É tudo, quanto ao conteúdo dogmático das cartas. Quanto ao resto, elas excitam os camaradas à propaganda enérgica, à orgulhosa e corajosa confissão da sua fé face aos adversários, à luta sem tréguas contra o inimigo de fora e de dentro; e, sob esse aspecto, elas poderiam também ter sido escritas por um entusiasta da Internacional, por menos profeta que ele fosse.
III
As cartas são apenas a introdução ao verdadeiro tema da comunicação do nosso João às sete Igrejas da Ásia Menor e, através delas, a toda a comunidade judaica reformada do ano 69, donde, mais tarde, saiu a cristandade. E então entramos no santuário mais íntimo do cristianismo primitivo.
Entre que tipo de gente se recrutavam os primeiros cristãos? Principalmente entre os “laboriosos e os fatigados”, pertencendo às mais baixas camadas do povo; tal como convém a um elemento revolucionário. E de quem se compunham essas camadas? Nas cidades, de homens livres decadentes — gente de toda a espécie, semelhantes aos “mean whites” dos Estados esclavagistas do Sul, aos aventureiros e aos vagabundos europeus das cidades marítimas coloniais e chinesas, depois de libertos — e sobretudo de escravos; nos latifundia da Itália, da Sicília e da África, de escravos; nos distritos rurais das províncias, de pequenos camponeses cada vez mais dependentes pelas suas dívidas. Não existia de modo algum uma via de emancipação comum para tantos elementos diversos. Para todos, o paraíso perdido situava-se no passado; para o homem livre desiludido, era a “polis”, cidade e Estado ao mesmo tempo, de quem os seus antepassados haviam sido outrora cidadãos livres; para os escravos prisioneiros de guerra, a era da liberdade antes da sujeição e do cativeiro; para o pequeno camponês, a sociedade gentílica e a comunidade do solo destruídas. Tudo isso, a mão de ferro niveladora do Romano conquistador havia deitado abaixo. O agrupamento social mais consistente que a Antigüidade tinha sabido criar era a tribo e a confederação de tribos aparentadas, agrupamento baseado, entre os Bárbaros, nas linhas de consagüinidade, entre os Gregos e os Italiotas, fundadores de cidades, sobre a “polis”, que compreendia uma ou várias tribos aparentadas. Filipe e Alexandre deram à península helênica a unidade política, mas dela não resultou a formação de uma nação grega. As nações só se tornaram possíveis depois da queda do Império Romano. Este pôs termo, de uma vez para sempre, aos pequenos agrupamentos; a força militar, a jurisdição romana, o aparelho de percepção de impostos, deslocaram completamente a organização interior tradicional. À perda da independência e da organização original acrescentou-se a pilhagem pelas autoridades civis e militares, que começavam por despojar os vencidos dos seus tesouros para depois lhes emprestarem de novo com taxas de usura, para que eles pudessem pagar novas exações. O peso dos impostos e a necessidade de dinheiro que daí resultava, em regiões em que a economia natural reinava exclusivamente ou de maneira preponderante, colocava cada vez mais os camponeses na dependência dos usurários, introduzindo uma grande desproporção de fortuna. Enriquecia os ricos e empobrecia completamente os pobres. E toda a resistência das pequenas tribos isoladas ou das cidades ao gigantesco poder de Roma era sem esperança. Que remédio para isso, que refúgio para os vencidos, os oprimidos, os empobrecidos, que saída comum para esses grupos humanos diversos, de interesses divergentes ou mesmo opostos? Era contudo preciso encontrar uma, era preciso que um único grande movimento revolucionário os envolvesse a todos.
Essa saída encontrou-se; mas não neste mundo. E, no estado de coisas de então, só a religião podia proporcioná-la. Descobriu-se um novo mundo. A existência da alma depois da morte do corpo tinha-se tornado, pouco a pouco, um artigo de fé reconhecido em todo o mundo romano. Além disso, um modo de sofrimento e de recompensa para a alma do morto, segundo as ações cometidas em vida, era por toda a parte progressivamente admitido. Quando às recompensas, na verdade, isso soava um pouco falso; a Antigüidade era demasiado espontaneamente materialista para não considerar infinitamente mais preciosa a vida real do que a vida no reino das sombras; para os Gregos, a imortalidade era mesmo considerada uma infelicidade. Apareceu o cristianismo, que levou a sério os sofrimentos e as recompensas no outro mundo e criou o céu e o inferno; assim estava encontrada a via por onde conduzir os laboriosos e os desiludidos deste vale de lágrimas para o paraíso eterno. De fato, era preciso a esperança de uma recompensa no Além para conseguir elevar a renúncia ao mundo e o ascetismo da escola estóica de Philon à categoria de princípio ético fundamental de uma nova religião universal, capaz de arrastar as massas oprimidas.
Contudo, a morte não abre de imediato esse paraíso celeste aos fiéis. Veremos que o reino de Deus, de que a nova Jerusalém é a capital, não se conquista nem se abre senão depois de ardentes lutas contra as potências infernais. Ora, os primeiros cristãos consideravam essas lutas como iminentes. Desde o começo, o nosso João designa o seu livro como a revelação “de coisas que devem acontecer em breve”; pouco depois, no versículo três, ele diz: “Feliz aquele que lê e aqueles que escutam as palavras da profecia, porque o tempo está próximo”; à comunidade de Filadélfia, Jesus Cristo faz escrever: “Virei em breve”, e, no último capítulo, o anjo diz que revelou a João “as coisas que devem acontecer em breve” e ordena-lhe: “Não seles as palavras da profecia deste livro, porque o tempo está próximo”, e Jesus Cristo diz por duas vezes, versículos 12 e 30: “Virei em breve”. Veremos em seguida quanto essa vinda era esperada para breve.
As visões apocalípticas que o autor faz passar sob os nossos olhos são todas, e quase sempre palavra por palavra, extraídas de modelos anteriores. Em parte dos profetas clássicos do Antigo Testamento, sobretudo de Ezequiel, em parte dos apocalipses judaicos posteriores, compostos segundo o protótipo do livro de Daniel, e sobretudo do livro de Enoch, já redigido, pelo menos em parte, nessa época. Os críticos já demonstraram, até os mínimos detalhes, de onde o nosso João tirou cada imagem, cada prognóstico sinistro, cada chaga inflligida à humanidade incrédula, em suma, o conjunto de materiais do seu livro; de forma que ele manifesta uma pobreza de espírito pouco comum, mas ainda é o próprio a proporcionar-nos a prova de que, as suas pretensas visões e êxtases, ele não as viveu, nem mesmo em imaginação, tal como as descreve.
Eis, em algumas palavras, a marcha das aparições. Primeiro, João vê Deus sentado sobre o seu trono, um livro selado com sete selos na mão; diante dele está o cordeiro (Jesus) degolado, mas de novo vivo, que é considerado digno de abrir os selos. A abertura dos selos é acompanhada de toda a espécie de sinais e de prodígios ameaçadores. Ao quinto selo João apercebe, sob o altar de Deus, as almas dos mártires de Cristo que foram mortos por causa da palavra de Deus:
Eles gritaram com voz forte: Até quando, mestre santo e venerável, continuarás a adiar o julgamento e a vingança do nosso sangue sobre os habitantes da terra?
Nesta altura, é dada a cada um uma veste branca e dizem-lhes que esperem ainda um pouco até que esteja completo o número de mártires que devem morrer. Ainda então não se fala da “religião do amor”, do “amai aqueles que vos odeiam, abençoai os que vos maldizem” etc. . . . Aqui prega-se abertamente a vingança, a sã, a honesta vingança a exercer sobre os perseguidores dos cristãos. Isso prolonga-se ao longo de todo o livro. Quanto mais se aproxima a crise, mais as chagas e os julgamentos chovem densamente do céu, e mais o nosso João sente alegria ao anunciar que a maioria dos homens continua a não se arrepender e a recusar fazer penitência pelos seus pecados; que novos flagelos de Deus devem cair sobre eles; que Cristo deve governá-los com uma vara de ferro e pisar o vinho no lagar da cólera de Deus todo poderoso; mas que, apesar de tudo, os maus continuam a ter o coração endurecido. É o sentimento natural, afastado de toda a hipocrisia, de que se está em luta, e que “na guerra como na guerra”. Na abertura do sétimo selo, aparecem sete anjos com trombetas: sempre que um anjo toca a trombeta, produzem-se novos sinais de terror. Depois do sétimo toque de trombeta, sete novos anjos surgem em cena trazendo as sete cóleras de Deus, que são lançadas sobre a terra, e de novo chovem flagelos e julgamentos, no essencial uma fatigante repetição do que já acontecera inúmeras vezes. Depois, surge a mulher, Babilônia, a grande prostituída, vestida de púrpura e de escarlate, sentada sobre as águas, bêbada do sangue dos santos e do sangue dos mártires de Jesus; é a grande cidade sobre as sete colinas que tem a realeza sobre os reis da terra. Está sentada sobre um animal que tem sete cabeças e dez cornos. As sete cabeças são sete montanhas, são também sete “reis”. Desses reis, cinco passaram; um existe, o sétimo virá, e, depois dele, um dos cinco primeiros voltará, o qual estava ferido de morte mas curou-se. Este reinará sobre a terra quarenta e dois meses ou três anos e meio (a metade de uma semana de anos de sete anos), perseguirá os fiéis até a morte e fará triunfar a impiedade. Em seguida, trava-se uma grande batalha decisiva, os santos e os mártires são vingados pela destruição da grande prostituta Babilônia e todos os seus partidários, quer dizer, a grande maioria dos homens; o diabo é precipitado no abismo e aí é agrilhoado durante mil anos, durante os quais reina Cristo com os mártires ressuscitados. Quando os mil anos tiverem sido cumpridos, o diabo é libertado: segue-se uma última batalha dos espíritos na qual ele é definitivamente vencido. Há uma segunda ressurreição, os restantes mortos ressuscitam e comparecem diante do trono de Deus (não do de Cristo, reparem bem) e os fiéis entram num novo céu, numa nova Terra e numa nova Jerusalém para a vida eterna. Tal como toda esta construção é erguida com materiais quase exclusivamente judeus e pré-cristãos, também inclui quase exclusivamente concepções puramente judaicas. Desde que as coisas começaram a correr mal para o povo de Israel, a partir do momento em que ficou tributário da Assíria e da Babilônia, desde a destruição dos dois reinos de Israel e de Judá, até à sua submissão pelos Seleucidas, isto é, de Isaías até Daniel, sempre existiu, nas horas da adversidade, a profecia de um salvador providencial. No capítulo XII, I, de Daniel encontra-se a profecia da descida de Miguel, o anjo-da-guarda dos Judeus, que os libertará da sua grande angústia: “Muitos mortos ressuscitarão; haverá uma espécie de julgamento final e aqueles que ensinaram a justiça à multidão brilharão como estrelas, para sempre e perpetuamente”. De cristão, apenas a forma como se insiste na iminência do reino de Jesus Cristo e na felicidade dos fiéis ressuscitados, particularmente dos mártires.
É à crítica alemã, e sobretudo a Ewald, Lucke e Ferdinand Benary que devemos a interpretação desta profecia, no que respeita aos acontecimentos da época. Graças a Renan, ela penetrou noutros meios para lá dos círculos teológicos. A grande prostituída, Babilônia, significa, como vimos, a cidade das sete colinas, Roma. Do animal sobre o qual ela está sentada, diz-se, XVII, nove, 11:
As sete cabeças são sete montanhas sobre as quais a mulher está sentada. São também sete reis: cinco caíram, um existe, o outro ainda não veio, e, quando vier, ficará pouco tempo. E o animal que estava, e que já não está, é um oitavo rei, e pertence ao número dos sete, e caminha para a perdição.
O animal é, pois, a dominação mundial de Roma, representada sucessivamente por sete imperadores, um dos quais foi ferido de morte e deixou de reinar, mas que se curou, e voltará, para cumprir, como oitavo rei, o reino da blasfêmia e da rebelião contra Deus.
E foi-lhe ordenado que fizesse a guerra aos santos e os vencesse. E foi-lhe dada autoridade sobre todas as tribos, todos os povos, todas as línguas e todas as nações, e todos os habitantes da Terra o adorarão, aqueles cujo nome não foi escrito desde a fundação do mundo no livro da vida do cordeiro que foi imolado. E ela fez com que todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, recebessem uma marca sobre a mão direita ou sobre a fronte e com que ninguém pudesse comprar ou vender sem ter a marca, o nome do animal ou o número do seu nome. É esta a sabedoria. Que quem tem inteligência calcule o número do animal. Porque é um número de homem e o seu número é 666 (XIII, sete-18).
Constatemos apenas que o boicote é mencionado aqui como uma medida a empregar pelo poderio romano contra os cristãos — que ele é, pois, manifestamente uma invenção do diabo — e passemos à questão de sabermos quem é esse imperador romano que já reinou, que foi ferido de morte e que volta como o oitavo da série para ser o Anticristo.
Depois de Augusto, o primeiro, temos: dois, Tibério; três, Calígula; quatro, Cláudio; cinco, Nero; seis, Galba. “Cinco caíram, um existe”. Portanto Nero já caiu. Galba existe. Galba reinou de 9 de junho de 68 até 15 de janeiro de 69. Mas, assim que ele subiu ao trono, as legiões do Reno sublevaram-se sob Vitellius, enquanto, noutras províncias, outros generais preparavam levantamentos militares. Mesmo em Roma, os pretorianos sublevaram-se, mataram Galba e proclamaram Otão imperador.
Daqui resulta que o nosso “Apocalipse” foi escrito sob Galba, naturalmente para o fim do seu reinado, ou mais tarde, durante os três meses (até 15 de abril de 69) do reinado de Otão, o sétimo. Mas quem é o oitavo, que foi e não é? O número 666 é a chave.
Entre os Semitas — os Caldeus e os Judeus — desta época, uma arte mágica estava em voga, baseada num duplo significado das letras. Desde cerca de trezentos anos antes da nossa era, as letras hebraicas eram também empregues como números: a=1, b=2, c=3, d=4, e assim sucessivamente. Ora, os adivinhos cabalistas adicionavam os valores numéricos das letras de um nome, e com a ajuda da soma dos algarismos obtida, por exemplo formando palavras ou combinações de palavras de um igual valor numérico que permitiam extrair conclusões sobre o futuro de quem tinha o nome, procuravam fazer profecias. De forma idêntica exprimiam-se palavras secretas nessa língua numérica. Dava-se a esta arte um nome grego, “ghematriah”, geometria; os Caldeus, que a exerciam como profissão, e a quem Tácito chamava “mathemaci”, foram expulsos de Roma sob Cláudio, e de novo sob Vitellius, provavelmente por “delito grave”.
Foi precisamente por meio desta matemática que foi produzido o número 666. Por detrás dele, esconde-se o nome de um dos primeiros cinco imperadores romanos. Ora, Ireneu, no fim do século II, além do número 666, conhecia a variante 616, que datava também de uma época em que o enigma dos algarismos era ainda conhecido. Se a solução responder igualmente aos dois números, a prova está feita.
Ferdinand Bernary, em Berlim, encontrou essa solução. O nome é Nero. O número fundamenta-se em Neron Kesar, a transcrição hebraica — como o atestam o Talmude e as inscrições palmirianas — do grego “Nérôn Kaisar”, Nero imperador, que tinha, como legenda, a moeda de Nero, cunhada nas províncias do Leste do Império. Assim: n (nun)=50; r(resch)=200; v(vau) por 0=6; n(nun)=50; k(koph)=100; s(samech)=60; e r(resch)=200; total=666. Ora, tomando como base a forma latina, “Nero Caesar” o segundo n(nun)=50 suprime-se, e obtemos 666-50=616, a variante de Ireneu.
Efetivamente, todo o Império Romano, no tempo de Galba, vivia em plena confusão. O próprio Galba, chefiando as legiões de Espanha e da Gália, marchara sobre Roma para expulsar Nero; este fugiu e fez-se matar por um liberto. Mas, contra Galba, não só os pretorianos em Roma mas também os comandantes das províncias conspiravam; por todo o lado surgiram pretendentes ao trono, preparando-se para avançar sobre a capital com as suas legiões. O Império parecia ter caído numa guerra intestina; a sua queda parecia iminente. Para cúmulo, espalhou-se o boato, sobretudo no Oriente, de que Nero não estava morto, mas apenas ferido, que estava refugiado entre os Partas, que atravessaria o Eufrates e surgiria com uma força armada para inaugurar um novo reino de terror ainda mais sangrento. Sobretudo a Acaia e a Ásia foram alarmadas com essas notícias. E, precisamente no momento em que o “Apocalipse” deve ter sido composto, apareceu um falso Nero que se estabeleceu com um partido bastante numeroso na ilha de Citnos (a Térmia moderna), no mar Egeu, perto de Patmos e da Ásia Menor, até que foi morto sob Otão. Nada de espantoso que entre os cristãos, contra quem Nero lançara as primeiras grandes perseguições, se tenha propagado o boato de que ele havia de voltar como Anticristo, que o seu regresso bem como uma nova e mais séria tentativa de exterminação sangrenta da jovem seita seriam o presságio e o prelúdio de Cristo, da grande batalha vitoriosa contra as potências do inferno, do reino dos mil anos a estabelecer “em breve” e cuja chegada certa permitia aos mártires irem alegremente para a morte.
A literatura cristã e de inspiração cristã dos dois primeiros séculos garante, com índices suficientes, que o segredo do número 666 é então conhecido de muitos. Ireneu de certeza que já o não conhecia, mas, por outro lado, sabia, como muitos outros até fins do século II, que o animal do “Apocalipse” era Nero voltando. Depois, este último traço perdeu-se e o nosso “Apocalipse” caiu em poder da interpretação fantástica dos adivinhos ortodoxos; eu próprio ainda conheci pessoas idosas que, segundo os cálculos do velho Johnn Albrecht Bengel, esperavam o fim do mundo e o último julgamento para o ano de 1836; a profecia realizou-se na data anunciada. Só que o julgamento não atingiu o mundo dos pecadores, mas antes os piedosos intérpretes do “Apocalipse”. Porque, nesse ano de 1836, F. Bernary forneceu a chave do número 666 e pôs assim termo a todo esse cálculo divinatório, a essa nova “ghemetriah”.
Do reino celeste reservado aos fiéis, o nosso João apenas nos fornece uma descrição muito superficial. Para a época, a nova Jerusalém é construída segundo um plano bastante grandioso: um quadrado de 12.000 estádios de lado=2227 quilômetros, portanto uma superfície de cerca de 5 milhões de quilômetros quadrados, mais do que metade dos Estados Unidos da América, construída unicamente em ouro e pedras preciosas. Aí, Deus habita no meio dos seus e ilumina-os, substituindo o Sol; não há já nem morte, nem lamentos, nem sofrimentos; um rio de água viva corre através da cidade, nas suas margens cresce a árvore da vida produzindo doze vezes os seus frutos, dando fruto todos os meses, e as folhas das árvores servem “para a cura dos gentis” (à maneira de um chá medicinal, segundo Renan: “O Anticristo”, p. 542). Aí vivem os santos nos séculos dos séculos.
Era assim que se construía o cristianismo na Ásia Menor, o seu primeiro centro, por volta do ano de 68, segundo o que conhecemos. Nenhum indício de uma Trindade; em seu lugar, o velho Jeová, uno e indivisível, do judaísmo decadente, que, de Deus nacional judeu, se elevou à categoria de Deus único; Deus supremo do céu e da terra onde pretende reinar sobre todos os povos, prometendo a graça aos convertidos e exterminando os rebeldes sem misericórdia, nisso fiel ao antigo “parcere subjectis ac debellare superbos”. Também é esse Deus que preside o último julgamento, e não Jesus Cristo, como nas narrativas ulteriores dos Evangelhos e das Epístolas. Conforme à doutrina persa da emanação, familiar ao judaísmo decadente, o Cristo é o cordeiro, emanado de Deus de toda a eternidade; tal como, embora ocupando um lugar muito inferior, os “sete espíritos de Deus” que devem a sua existência a uma passagem poética mal compreendida (Isaías, XI, dois). Nenhum deles é Deus ou igual a Deus, mas submetido a ele. O cordeiro oferece-se de sua plena vontade como sacrifício expiatório pelos pecados do mundo, e por esse alto feito vê-se expressamente promovido em grau no céu; em todo o livro esse sacrifício voluntário é contado como um ato extraordinário e não como uma ação oriunda necessariamente do mais profundo do seu ser.
É evidente que toda a corte celeste dos antigos, dos querubins, dos anjos e dos santos não falta. Para se constituir em religião, o monoteísmo sempre teve de fazer concessões ao politeísmo, datando do “Zendavesta”. Entre os Judeus, a recaída para os deuses pagãos e sensuais persiste em estado crônico até que, depois do exílio, a corte celeste, à maneira persa, acomoda um pouco melhor a religião à imaginação popular. O próprio cristianismo, mesmo depois de ter substituído o Deus dos Judeus eternamente imutável pelo misterioso Deus trinitário, diferenciado em si mesmo, não conseguiu suplantar o culto dos antigos deuses entre as massas senão pelo culto dos santos. Assim, segundo Fallmerayer, o culto de Júpiter persistiu no Peloponeso, na Maina, na Arcádia, até cerca do século IX. E só a época moderna e o seu protestantismo afastam os santos e encaram, enfim, seriamente, o monoteísmo diferenciado.
O nosso “Apocalipse” também não conhece o dogma do pecado original nem a justificação pela fé. A fé dessas primeiras comunidades belicosas difere completamente da Igreja triunfante posterior; ao lado do sacrifício expiatório do cordeiro, a próxima vinda de Cristo e a iminência do reino milenar constituem o seu conteúdo essencial e ela manifesta-se pela ativa propaganda, pela luta sem tréguas contra o inimigo de fora e de dentro, pela orgulhosa confissão das suas convicções revolucionárias diante dos juízes pagãos, pelo martírio corajosamente suportado na certeza da vitória.
Como vimos, o autor não suspeita ainda que é algo mais que Judeu. Conseqüentemente, nenhuma alusão, em todo o livro, ao batismo; existem também numerosos indícios de que o batismo é uma instituição do segundo período cristão. Os 144.000 Judeus crentes são “selados”, não batizados. Dos santos no céu é dito: “São aqueles que lavaram e embranqueceram as longas vestes no sangue do cordeiro”; nada acerca da água do batismo. Os dois profetas que precedem a aparição do Anticristo (cap. XI) também não batizam e, no capítulo XIX, 10, o testemunho de Jesus não é o batismo mas o espírito de profecia. Teria sido natural em todas estas ocasiões falar do batismo, por pouco que estivesse já instituído. Estamos pois autorizados a concluir com uma quase certeza que o nosso autor não o conhecia e que ele só foi introduzido quando os cristãos se separaram completamente dos Judeus.
O nosso autor é também ignorante acerca do segundo sacramento ulterior — a eucaristia. Se no texto de Lutero o Cristo promete a todos os Tiasirianos que perseveraram na fé a entrada na sua casa e a comunhão com ele, isso constitui uma falsa abordagem do texto. Em grego lê-se “deipneso”, eu cearei (com ele), e a palavra está corretamente traduzida na bíblia inglesa: “I shall sup with him”. A ceia como festim comemorativo não é aqui referida.
O nosso livro, com a data (68 ou 69) atestada de maneira tão particular, é indubitavelmente o mais antigo da literatura cristã no seu conjunto. Nenhum outro é escrito numa língua tão bárbara, em que formigam os hebraísmos, as construções impossíveis, os erros gramaticais. Só os teólogos de profissão, ou outros historiógrafos interessados, continuam a negar que os Evangelhos e os “Atos dos Apóstolos” são arranjos tardios de escritos hoje perdidos e cujo tênue núcleo histórico já não pode ser descoberto sob a luxuriante lenda; mesmo as três ou quatro “Epístolas” apostólicas pretensamente autênticas de Bruno Bauer não representam mais do que escritos de uma época posterior, ou, na melhor das hipóteses, composições mais antigas de autores desconhecidos, retocadas e embelezadas por numerosas adições e interpolações. É muito mais importante para nós possuir com a nossa obra, cujo período de redação se estabelece com a margem de erro de um mês, um livro que nos apresenta o cristianismo sob a sua forma mais rudimentar, sob a forma em que está para a religião de Estado do século IV, constituída na sua dogmática e na sua mitologia pouco mais ou menos como a mitologia ainda vacilante dos Germanos de Tácito está para a mitologia do Edda, plenamente elaborada sob a influência de elementos cristãos e antigos.
O germe da religião universal encontra-se lá, mas contém ainda em estado indiferenciado as mil possibilidades de desenvolvimento que se realizaram nas inumeráveis seitas ulteriores. Se o fragmento mais antigo do processo de elaboração do cristianismo tem para nós um valor muito particular, é porque nos proporciona, na sua integridade, o que o judaísmo — fortemente influenciado por Alexandria — forneceu ao cristianismo. Tudo o que é posterior é acrescento ocidental, greco-romano. Foi necessária a mediação da religião judaica monoteísta para fazer revestir ao monoteísmo erudito da filosofia grega vulgar a forma religiosa sob a qual ele podia chegar às massas. Uma vez essa mediação encontrada, ele só podia tornar-se uma religião universal no mundo greco-romano, continuando a desenvolver-se para finalmente se fundir no fundo de idéias que esse mundo tinha conquistado.